STF retoma julgamento do Marco Temporal e Senado adia votação

Matéria está gerando um conflito entre os Poderes Legislativo e Judiciário
Indígenas assistiram a sessão do julgamento dentro do Plenário do STF

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Como o Blog do Zé Dudu antecipou (aqui), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) adiou, na sessão da quarta-feira (20), a análise do projeto que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas (PL n° 2.903/2023) — já aprovado na Câmara dos Deputados. A senadora governista Eliziane Gama (PSD-MA) pediu vista para analisar melhor o projeto.

O PL precisa ser votado na CCJ e, se aprovado, segue para votação no Plenário. O tema divide senadores até da base governista porque, antes de votarem com o governo, priorizam os próprios interesses. Um deles são os laços com a Bancada Ruralista no Congresso, a favor do marco temporal.

Ao pedir vista e adiar a votação da matéria, Eliziane Gama adiou a possível derrota do governo Lula, para a próxima semana. Ela justificou o pedido, dentre outros argumentos, afirmando que o Congresso Nacional estaria abrindo precedente aprovando um projeto de lei com vício de inconstitucionalidade, já que a questão está sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com manifestações indicando que a Corte vai considerar o marco temporal inconstitucional.

Para a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), o projeto tem vício de inconstitucionalidade. Seu pedido de vista adiou a votação da matéria

‘’Uma lei que poderá ser aprovada por esta Casa e que, não há dúvida nenhuma, não vai vigorar. Porque a Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI] será impetrada, sem nenhuma dúvida, pelos órgãos que trabalham com a questão ambiental brasileira’’, advertiu.

No centro da discussão está o PL n° 2.903/2023, que trata da demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Esse marco temporal estabelece que apenas as áreas ocupadas ou em disputa até essa data estariam elegíveis para a demarcação.

Senadores governistas ainda pretendem insistir com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para que ele distribua o tema para mais comissões, antes de seguir para votação no plenário.

As opções seriam as comissões de Direitos Humanos e Meio Ambiente. A manobra daria mais tempo para o STF julgar o tema. A pauta é uma das prioridades da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que é contra o marco temporal.

Líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) (Foto: Pedro França/Agência Senado)

Plano B

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), revelou que os congressistas alinhados ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) devem apresentar um projeto substitutivo ao projeto de lei do marco temporal (PL n° 2.903/2023), que está tramitando no Senado.

Randolfe adiantou que o senador Alessandro Vieira (MDB-SE), o Ministério dos Povos Indígenas e a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) estão elaborando o substitutivo que deve ser apresentado na CCJ na próxima semana.

“Não parece ser de bom-tom nós confrontarmos a declaração de inconstitucionalidade do Supremo com um projeto de lei”, declarou Randolfe, em referência ao julgamento do STF quanto à constitucionalidade do marco temporal.

De acordo com o congressista, o texto substitutivo até poderia ser adotado pelo relator do marco temporal na CCJ, senador Marcos Rogério (PL-RO). Randolfe afirmou que o texto é a tentativa do governo de buscar uma “mediação” entre o Congresso e o Supremo.

Julgamento será retomado no STF nesta quinta-feira (21)

O julgamento do recurso extraordinário (RE n° 1017365) sobre o caso retornou à pauta da sessão do plenário do STF na quarta-feira (20), e com o voto do ministro Dias Toffoli, o placar contra a tese do marco temporal ampliou para 5 x 2, ficando a apenas um voto para formar maioria na Corte e derrubar a tese.
O julgamento no STF será retomado nesta quinta-feira (21).

‘’O rally entre Congresso e STF pode gerar uma crise institucional’’, disse uma fonte à reportagem. ‘’Para julgar o marco temporal, a Corte Suprema banca uma disputa institucional que não deve ser encerrada ao término da votação’’, complementa a fonte.

Congresso x STF

A sessão da CCJ no Senado indicou que o clima vai esquentar entre os dois Poderes. Alguns senadores foram diretos ao ponto. “Não podemos aqui abrir mão da nossa prerrogativa de legislar, senão fechemos o Congresso de uma vez e aguardemos que todas as questões sejam resolvidas pelo STF”, disse Sérgio Moro (União-PR).

Outros senadores acompanharam a fala dele. “Temos que ter tamanho de senador, que não é menor que ministro do Supremo. Temos mecanismos para frear esses desmandos”, afirmou Plínio Valério (PSDB-AM).

Weverton Rocha (MA), que é do PDT, partido da base do governo, também criticou o STF. “Creio [que a votação do projeto em plenário] será a última instância. Esse projeto é fruto de debate dessa Casa”, disse. “É aqui que se decide, não é no Supremo. O Supremo só tem que guardar a Constituição. Não é deliberar se fizemos certo ou errado.”

O texto do projeto de lei proíbe a ampliação de terras indígenas. Pela proposta atual, uma área só pode ser demarcada se as comunidades indígenas estavam no local antes de 1988. É preciso ainda atestar que os ocupantes são, de fato, indígenas com adoção de hábitos e costumes das tribos.

Para o relator do PL, senador Marcos Rogério (PL-RO), o STF só poderia se pronunciar sobre o tema quando sancionada a lei. Enquanto a discussão estiver no Congresso, afirma ele, a Corte não pode intervir. Entretanto, o STF resolveu bater de frente com o Congresso e voltou a julgar o RE n° 1017365, protocolado em 12 de dezembro de 2016, desengavetado e votado apenas agora no tribunal.

O relator protestou: “São instâncias independentes. O Supremo não pode, sem devido processo legal, dizer que o Parlamento não poder legislar sobre isso. Cada um cumpre o seu papel”, disse. “Tem que haver um questionamento depois dela [a lei] sancionada, e aí o Supremo julgar. Se julgar inconstitucional, é outro cenário.”

Rogério emitiu parecer favorável e disse que a lei é “fundamental para todos os brasileiros” e argumenta que o marco temporal evita a “fraude de proliferação de aldeias” indígenas que, segundo ele, seriam recrutados de outras regiões do Brasil e de países vizinhos, “sob o único propósito de artificializar a expansão dos limites da demarcação”.

A oposição fez a maior quantidade de protestos. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, também mencionou o STF. “Independente do Supremo, é essa lei, ao ser sancionada, que vai estabelecer os critérios, a partir de agora, para possíveis interpretações sobre novas terras indígenas”, afirmou.

O senador Jorge Seif (PL-SC) criticou outras pautas que a Corte também julga. “Não podemos mais aceitar que continuemos entregando [a discussão ao STF]. É marco temporal, aborto, droga, cobrança sindical, para o STF. Entregue a chave para o Supremo Tribunal Federal e vamos para Casa fazer outra coisa”, disse.

Magno Malta (PL-ES) reforçou. “Se ficarmos de ‘fazer aqui vai cair no Supremo’ é dar mais corda para esse ativismo judicial. Nós mesmos votamos aqui e nós mesmos nos rebaixamos. Então por que Senado?”, questionou. Ele, que é favorável ao marco temporal, afirma que a derrubada da tese é “puramente ideológica” e entregaria terras a ONGs internacionais.

Derrota do governo na CCJ

Mesmo com o adiamento da votação, o governo teve nesta quarta-feira a indicação de que a proposta deverá avançar na CCJ. Um requerimento de realização de audiência pública proposto por Eliziane foi derrubado por 15 votos a 8. Ela admite que a melhor possibilidade para derrubar o projeto é no plenário, próximo passo após a aprovação do colegiado.

“Meu otimismo é maior. É muito temerário o resultado da votação na quarta-feira que vem”, disse. Ela acredita que o Senado hoje é “mais comprometido com uma pauta ambiental” e por isso o governo pode contornar os reveses no Congresso.

Ela prevê que a votação no plenário possa acontecer nas próximas semanas, o que poderia ocorrer após o STF declarar a inconstitucionalidade da tese de que não existe esse marco de ocupação até 1988 para demarcar uma reserva indígena.

“No plenário você poderá estar votando uma matéria onde há uma decisão formada pelo STF de inconstitucionalidade. Veja a insistência”, afirmou.

O governo ainda prevê a possibilidade alternativa de conversar com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para que a proposta ainda possa ser encaminhada para avaliação na Comissão de Direitos Humanos.

O projeto do marco temporal foi aprovado na Câmara em maio, por 283 votos a 155, sob protesto de parlamentares de esquerda e movimentos indigenistas, que chamaram a proposta de “assassina”. As queixas motivaram a reação do PL e do PP, que apresentaram queixas no Conselho de Ética contra deputadas do PT e PSOL.

Como mostrou o Estadão, o marco temporal pode inviabilizar a demarcação de 114 territórios indígenas em 185 municípios brasileiros. Se os 114 processos de demarcação fossem concluídos, o impacto na quantidade de terra exclusiva dos povos originários não seria tão grande — em vez dos atuais 14% de todo o território brasileiro, os indígenas passariam a ocupar 15% da área total do Brasil.

De acordo com monitoramento do Instituto Socioambiental (ISA) com base em publicações feitas no Diário Oficial da União, o Brasil tem 421 terras indígenas devidamente homologadas, que somam 106,6 milhões de hectares e onde vivem cerca de 466 mil indígenas.

* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.