Sem apoio, Pará não consegue viabilizar ferrovia

Políticos, empresários e forte lobby contrário obrigam projeto de ferrovia genuinamente paraense a ficar na gaveta
Projeto de ferrovia do Pará foi para a gaveta

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Brasília – A histórica desunião política e empresarial paraense ajuda a explicar como um dos projetos mais importantes para o futuro do estado do Pará foi jogado no fundo de uma gaveta, sem perspectiva de ser realizado. Ao comentar recente live com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, promovida pelo Sindicato da Indústria da Construção do Estado do Pará (Sinduscon-PA), sobre o imbróglio envolvendo a decisão do governo federal de antecipar a outorga da Estrada de Ferro Carajás (EFC) e da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), que beneficiou outro estado com a construção de uma ferrovia que teoricamente teria quer ser feita no Pará, o ex-Secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme), Adnan Demachki, do governo Simão Jatene (PSDB), foi crítico.

O resultado é que a decisão federal foi chancelada pela própria mineradora Vale, Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Ministério da Infraestrutura (MInfra) e Tribunal de Contas da União (TCU). “Quando Inês era morta,” como se diz no popular, a decisão não teve qualquer reação política do Palácio dos Despachos, da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), Federação das Indústrias do Estado do Pará (Fiepa), Sinduscon-PA, ou mesmo da Bancada Federal do Pará no Congresso Nacional. Apenas duas vozes roucas protestaram: a primeira foi a do ex-senador Fernando Flexa Ribeiro (PSDB-PA), e a segunda, do ex-titular da Sedeme, advogado Adnan Demachki.

Com a decisão sem reação, o Mato Grosso vai tirar do papel a Ferrovia de Integração do Centro Oeste (FICO), ligando Água Boa (MT) a Campinorte (GO), e o Pará continuará a ouvir o apito do trem levar, na duplicada EFC, o minério bruto, extraído em velocidade impressionante pela Vale, das entranhas da Serra dos Carajás, em plena floresta do gigante amazônico. Restará, após a retirada da matéria-prima estratégica, apenas o gigantesco buraco para os paraenses refletirem por que seus índices de desenvolvimento humano são alguns dos piores do Brasil.

“É como se o Pará tivesse sido premiado com um bilhete bilionário de loteria e não tivesse qualquer noção do que fazer com tanta riqueza,” ilustra à perfeição a professora, economista PHD da Universidade Federal do Pará (UFPA), Maria Amélia Enríquez, pesquisadora e especialista no assunto.

Assinatura do contrato de prorrogação das outorgas de duas ferrovias exploradas pela Vale

O colosso avança

Mais valiosa empresa da América Latina, a mineradora Vale superou US$ 100 bilhões em valor de mercado num intervalo de três anos, mesmo após os desastres de Mariana e Brumadinho, em Minas. O lucro do colosso avançou mais de 2.200% no primeiro trimestre de 2021 e seus acionistas comemoram a alta de 14% na produção de minério neste período, atingindo 68 milhões de toneladas.

No dia 16 de dezembro de 2020, uma quarta-feira, na suntuosa sede da Vale no Rio de Janeiro, o Conselho de Administração da mineradora aprovou os termos aditivos dos contratos de prorrogação antecipada da Estrada de Ferro Carajás (EFC) e da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). A prorrogação vale por mais 30 anos a contar de 2027, quando vencem os atuais contratos. Os documentos foram assinados dois dias depois (18/12), numa cerimônia em Brasília. Os compromissos previstos alcançaram a cifra de R$ 24,7 bilhões, e começaram a ser aplicados neste ano.

Do total, R$ 11,8 bilhões referem-se ao pagamento da outorga pelas duas ferrovias; R$ 8,7 bilhões, para a construção da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico) e R$ 3,9 bilhões para os demais compromissos, entre os quais a ampliação do serviço do Trem de Passageiro e obras de melhoria da segurança da malha, que vão beneficiar centenas de comunidades distribuídas ao longo das duas ferrovias. Do valor da outorga, R$ 300 milhões serão usados na compra de trilhos e dormentes destinados à Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) – outra ferrovia de interesse logístico da Vale.

Um comunicado da Agência Nacional de Transportes Terrestres informou que a Fico e a Fiol vão se conectar à atual Ferrovia Norte-Sul, viabilizando a criação de corredores alternativos para o escoamento de grãos do Centro-Oeste brasileiro, que reduzirão custos logísticos e, consequentemente, trarão maior competitividade ao produto do agronegócio brasileiro no mercado internacional.

A agência também avaliará a construção de um ramal ferroviário, como extensão da EFVM, com cerca de 82 quilômetros, de Santa Leopoldina a Anchieta, no litoral do Espírito Santo, sendo parte destes desembolsos elegíveis de dedução do custo total da outorga.

“Estamos muito felizes em dar mais um importante passo no de-risking [estratégia de desarranjo] da companhia. As prorrogações antecipadas retiram uma grande incerteza sobre a perenidade de parte relevante de nossa cadeia de logística integrada. A EFC e EFVM foram pioneiras na implementação do nosso modelo de gestão [VPS – Vale Production System]. Entre 2006 e 2019, investimos R$ 35,7 bilhões nas duas ferrovias, que hoje estão no rol das mais seguras do mundo. Continuaremos a investir para manutenção e expansão desses ativos,” afirmou o diretor-presidente da Vale, Eduardo Bartolomeo.

Adnan Demachki, ex-Secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) (Foto: Cristino Martins/Agência Pará)

Reação à decisão federal

Na live do Sinduscon-PA com o ministro Tarcísio, o presidente do sindicato, Alex Carvalho, para espanto geral de quem acompanhava a reunião, perguntou: “Ministro, existe um ‘certo ruído’ de que os valores da antecipação da outorga da ferrovia da Vale não foi utilizada no Pará(…). O senhor pode explicar?”.

A forma como a pergunta foi feita teve reação. O ex-titular da Sedeme, Adnan Demachki, não gostou do que ouviu. “Bom, devo reconhecer a competência e dinamismo do Ministro Tarcísio, advindo da PPI que gestou a maioria dos projetos de infraestrutura do país. Da live, dois foram os pontos positivos pro nosso estado: os investimentos do Ministério em várias rodovias federais no Pará são significativos e a decisão de privatizar os aeroportos da região norte, o que permitirá novos investimentos que traduzirão em eficiência e qualidade dos serviços,” pontuou.

Demachki prossegue: “Os demais assuntos tratados na live me causaram preocupação. Não posso deixar de dizer que o importante tema dos bilhões que a Vale terá que pagar de renovação pela outorga da ferrovia de Carajás foi introduzido na live de forma depreciativa para o estado, ao se dizer ao ministro que foi um “pequeno ruído” o Pará ter reivindicado esses recursos”.

“O interlocutor paraense, ao diminuir a importância do tema, permitiu ao ministro dizer que todos os recursos oriundos da renovação da concessão da ferrovia de Carajás viraram investimentos na própria ferrovia de Carajás. Bom, faltou o ministro dizer que o Ministério da Fazenda glosou parte desses recursos, excluindo itens como material rodante e outros que são itens de manutenção da ferrovia e não de investimentos. Faltou o ministro dizer que a outra parte do pagamento pela renovação da outorga da ferrovia de Carajás, – ele competente Ministro Tarcísio Freitas –, determinou que a Vale construa e entregue pro governo, uma ferrovia chamada Ferrovia de Integração do Centro Oeste (Fico), ligando Água Boa (MT) a Campinorte (GO), quando poderia ter virado ferrovia no Pará,” contestou o ex-secretário.

O ex-secretário Adnan Demachki foi um dos “pais” do projeto de uma ferrovia genuinamente paraense que foi para as “calendas” da burocracia governamental. Ele prossegue as críticas ao afirmar: “Nossas lideranças atuais poderiam ter se unido e lutado por esses recursos, como fizeram lideranças do Tocantins, que foram ao TCU e conseguiram, nestes últimos dias, que o órgão de controle recomendasse à ANTT que a concessão da BR-153 seja reinvestida no próprio estado do Tocantins,” destacou.

Prosseguindo a sua análise sobre o que se discutiu na live, Demachki ressalta que: “O Ministro, para ‘tentar compensar’ o Pará, trouxe o tema da Ferrogrão, pois o Pará estaria contemplado com essa ferrovia. A Ferrogrão foi gestada pelas grandes tradings [Nota do redator: Trading companies são empresas comerciais que atuam como intermediárias entre empresas fabricantes e empresas compradoras, em operações de exportação ou de importação] de soja: Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e Amaggi, e com seu poderio econômico e político vão construí-la. E tenho dito que não há a necessidade de os paraenses lutarem por ela, pois ela é tão importante para o Brasil e para o Agronegócio que será construída. Nós paraenses deveríamos nos esforçar é para reivindicar do ministro a inclusão no edital da Ferrogrão, a construção numa segunda etapa do trecho de ferrovia ligando Miritituba a Santarém, pois no edital já consta a obrigação numa segunda etapa da inclusão do trecho de Sinop a Lucas do Rio Verde (MT). Nós paraenses deveríamos estar cobrando do Governo Federal é a dragagem de um dos canais de acesso ao Porto de Barcarena, pois toda a carga da Ferrogrão será exportada por Barcarena, e o Porto precisa de investimentos”.

Na avaliação de Adnan Demachki, “o Ministro – que não destinou os recursos da renovação da ferrovia de Carajás para construir a Ferrovia Paraense e nem o trecho federal da Ferrovia Norte Sul de Açailândia a Barcarena –, disse da possibilidade da própria Vale ser autorizada a construir o trecho da Ferrovia Paraense de Marabá a Barcarena, para a empresa transportar minério por navios pequenos. E que não seria no modelo de uma licitação pública para uma concessionária operar uma ferrovia em favor do público e sim uma autorização para uma empresa construir uma ferrovia para a empresa transportar seus minérios,” contestou a decisão novamente.

Reforçando: “Isso mesmo, não seria uma ferrovia para desenvolver o estado e sim em favor de uma empresa”.

Adnan Demachki finaliza sua análise dizendo: ”Sinto que nestes tempos de pandemia as coisas mudaram de cabeça pra baixo e a gente deixou de ter a compreensão exata dos acontecimentos”.

Essa reportagem especial foi redigida pelo correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília e está dividida em duas partes, por razões de espaço.

Acompanhe a segunda parte: “Ministro explica razão de Pará ter sido preterido da construção de ferrovia”.

Por Val-André Mutran – de Brasília