Relatório da CPI das ONGs será votado na próxima semana

Após 30 reuniões, 28 depoimentos, diligência em reserva indígena no Pará e indiciamento do presidente do ICMBio, documento revela a relação promíscua entre governo e aparato do Terceiro Setor
Senador Marcio Bittar, à esquerda, entrega relatório da CPI ao presidente da comissão, senador Plínio Valério

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‘’Uma autêntica relação promíscua entre o atual governo e o aparato montado para atuar no Terceiro Setor, mistura a relação das coisas a ponto de não sabermos quem é quem, em um rosário de irregularidades’’, foi com essa afirmação, que o senador Marcio Bittar (União-AC) resumiu. na terça-feira (5), o relatório com a conclusão dos trabalhos apresentado à Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a atuação de organizações não-governamentais na Amazônia (CPI das ONGs). O relatório será votado após o prazo de cinco dias de vista coletiva que foi concedido pelo presidente da CPI, o senador Plínio Valério (PSDB-AM), para que os membros tenham acesso as mais de 270 páginas do documento.

Nesse período, os senadores poderão apresentar sugestões de alterações ao relatório. A senadora Damares Alves (Republicanos-DF), sinalizou, por exemplo, que deve apresentar recomendação de revisão do laudo antropológico da Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu, no Pará.

Apresentado pelo relator, o senador Marcio Bittar (União-AC) após seis meses de investigações (junho a dezembro), 28 depoimentos colhidos em 31 reuniões com audiências e diligência em terra indígena no Pará, o documento apresenta seis projetos legislativos e pede o indiciamento do presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Mauro Oliveira Pires, por corrupção passiva e improbidade administrativa.

Presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Mauro Oliveira Pires, é alvo de pedido de indiciamento no relatório da CPI das ONGs

Segundo Bittar, Mauro Pires cometeu infrações ao prestar consultoria de licenciamento ambiental por meio da empresa Canumã, da qual era sócio, enquanto era servidor público licenciado do ICMBio.

‘’Significa dizer que um servidor público pertencente a um órgão que participa dos processos de licenciamento ambiental passou a prestar serviços para empresas privadas exatamente nessa mesma área. Depois, ultrapassado o prazo da licença, ele retornou ao seu cargo para continuar se manifestando sobre pedidos de licenciamento ambiental, nos quais ele eventualmente pode ter atuado’’, revelou Bittar.

O indiciamento é a condição que passa o investigado quando o inquérito aponta um ou mais indícios de que ele cometeu determinado crime. Caso o relatório seja aprovado, o pedido será apresentado à Procuradoria da República do Distrito Federal, que poderá ou não acatar a conclusão da CPI.

Segundo o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 1940), comete crime quem receber, direta ou indiretamente, ainda que fora da função mas em razão dela, vantagem indevida ou aceitar promessa de tal vantagem. Já a infração de improbidade administrativa por enriquecimento ilícito (Lei nº 8.429, de 1992) corresponde à atividade para pessoa que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade.

Em nota à imprensa, o presidente do ICMBio se disse surpreso com o pedido de indiciamento. ‘’Fiquei surpreso com a inclusão de meu nome no relatório preliminar, pois fiz todos os esclarecimentos solicitados pelo relator e demais senadores. Permaneço à disposição dos senadores, em especial para superar quaisquer mal-entendidos’’, afirmou o presidente Mauro Pires.

Relação promíscua

A CPI teve como objetivo apurar a liberação, pelo governo federal, de recursos públicos para ONGs, bem como a utilização, por essas entidades, desses recursos e de outros por elas recebidos do exterior. A tarefa principal era tentar abrir a caixa-preta que protege as informações dessas entidades.

O relator também apontou para a concentração desses recursos em atividades-meio, ou seja, quando as ONGs destinam mais de metade de suas receitas em pagamento de pessoal. Segundo o senador, isso descumpre os objetivos para os quais essas verbas foram destinadas originalmente.

De acordo com o relatório foi verificado que, deliberadamente e com a anuência do governo federal, determinadas ONGs atuam de mãos dadas com os administradores do Fundo Amazônia e são diretamente beneficiadas com os recursos doados por países estrangeiros.

A CPI apurou ainda o desvirtuamento dos objetivos da ação dessas entidades, operando inclusive contra interesses nacionais, casos de abuso de poder, intromissão em funções institucionais do poder público e a aquisição, a qualquer título, de terras por essas entidades.

Marcio Bittar descreve no relatório que organizações de preservação ambiental “instigam e patrocinam” procuradores e promotores a buscarem na Justiça a suspensão de obras que poderiam afetar o meio ambiente na Região Norte. Bittar também acusou o ICMBio e o Ibama de atrasarem as construções de infraestrutura com a demora em conceder licenças ambientais.

‘’As ONGs [que foram investigadas] colocam no bolso bilhões [de reais] e a Amazônia [continua] cada dia mais pobre. E elas se unem na hora de proibir qualquer obra de infraestrutura para a Amazônia. Não consigo compreender: se o interesse brasileiro é combater a pobreza, como vai combater se não pode fazer obras de infraestrutura: estradas, pontes, poços, hidrelétricas, e se não pode acessar os recursos naturais?’’, indagou Bittar.

O relatório lido apresenta um projeto de lei para restringir a atuações abusivas do Ministério Público que impliquem paralisação de obras estruturantes e um projeto de lei complementar que altera as regras de licenças ambientais.

CPI das ONGS (CPIONGS) realiza diligência externa em São Félix do Xingu (PA). A visita visa verificar denúncias de interferência de organizações não governamentais na expulsão de cidadãos da Terra Indígena Apyterewa. Presidente da CPIONGS, senador Plínio Valério (PSDB-AM), segura cartaz com a frase: Queremos perícia no laudo antropológico Apyterewa. 

Causa indígena e patrocínios suspeitos

Bittar afirmou que existe uma “complexa rede de interesses”, especialmente estrangeiros, que atua por meio de ONGs para impor obstáculos ao desenvolvimento nacional e à vida das populações indígenas e outras comunidades da região amazônica. Segundo ele, países desenvolvidos investem na preservação da Amazônia para “terceirizar” a compensação do desmatamento e da emissão de gases que causam o efeito estufa realizada pelos que emitem. O relator ainda disse que se a Amazônia fosse próspera na exploração de seus recursos naturais seria um risco econômico às nações mais ricas.

‘’Países estrangeiros, dentre quais grandes emissores de gás carbônico, financiam ONGs no Brasil para difundir uma visão ‘’santuarista’’, de intocabilidade da Amazônia.

Os senadores Dr. Hiran (PP-RR) e Jaime Bagattoli (PL-RO) apontaram o espaço produtivo disponível nos estados da Região Norte. Bagattoli afirmou que o município de São Félix do Xingu, no Pará, é composto em grande parte por unidades de conservação e gigantescas Reservas Indígenas,a lgumas delas com poucos indivíduos de tribos que tem costumes nômades, ou seja, não fixam a Aldeia num território.

Sobre o que diz ser uma distorção patrocinada pelo Estado brasileiro, o senador Bagattoli indaga: ‘’Será que é justo o estado, com a cidade e o produtor rural, terem só 11% [das terras] para poder desfrutar?’’.

Como resposta, o relatório sugere dois projetos de lei que regulamentam atividades econômicas em terras indígenas e o Fundo Amazônia, que capta doações para ações de prevenção e combate ao desmatamento na floresta.

Transparência

A CPI das ONGs apresentou, em seu relatório final, propostas legislativas como resultado dos trabalhos do colegiado. Dentre as sugestões, apresentadas no relatório elaborado pelo senador Márcio Bittar, está o projeto de lei que pretende dar maior transparência e responsabilização na prestação de contas das ONGs. Além disso, a proposta prevê o impedimento e estabelecimento de quarentena para servidores públicos participarem em órgãos de direção e fiscalização dessas entidades.

O relator indagou a moralidade na alternância das mesmas pessoas entre cargos públicos, funções de direção nas ONGs e cadeiras acadêmicas. Segundo Bittar, “quando estão no governo, elas angariam recursos que serão destinados às ONGs para as quais, posteriormente, atuarão”.

Para o senador, a CPI deve apresentar projeto de lei que estabeleça quarentena de dois anos para que um agente público possa ocupar a direção ou vaga no conselho consultivo dessas entidades. A proposta ainda prevê regras de transparência e responsabilização na prestação de contas das ONGs.

Caso seja aprovado, a CPI também apresentará projeto de resolução do Senado para criar uma Comissão Permanente da Amazônia, na Casa. Na avaliação do relator, o novo órgão será a “consequência mais prática da continuidade do trabalho” do colegiado.

Projetos de Emenda Constitucional

O relator afirmou que integrantes do colegiado buscarão apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para prever que a criação de novas unidades de conservação somente possa ser feita por lei, propiciando uma participação efetiva da sociedade brasileira nessas discussões. A PEC, no entanto, ainda não foi apresentada por não ter o número mínimo de assinaturas necessárias.

Além disso, o relatório sugere que a Constituição seja alterada para que o Procurador-Geral da República (PGR) possua legitimidade para processar e julgar ações relacionadas a obras de grande interesse público ou nacional. O Supremo Tribunal Federal (STF) teria a competência de julgar essas ações. Como as duas sugestões não obtiveram no mínimo 1/3 de assinaturas da Casa, não serão propostas oficiais da CPI.

O manifesto comovente da cidade de São Félix do Xingu, Marcilene Frutuoso Oliveira, clamando por justiça depois que perdeu sua casa e tudo o que tem na desobstrução da região de Apyterewa, no Pará. É assim que os colonos estão sendo tratados

Violência

Os parlamentares criticaram episódios de violência atribuídos a ações de funcionários das ONGs. A deputada Silvia Waiãpi (PL-AP) e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) relataram casos em que foram vítimas de ameaça de agressão.

‘’Como ministra, eu tentei ir na área ianomâmi [na Amazônia]. Sabe qual foi o recado que eu recebi? “A senhora não entra, porque as ONGs vão fomentar os índios para lhe machucar, para lhe agredir”. Fui recomendada pelo serviço de segurança a não entrar’’, revelou Damares.

Segundo Bittar, o colegiado recebeu denúncias de que as ONGs perseguem os moradores de comunidades da Amazônia que as contestam.

‘’Foram relatados casos de deslegitimação do discurso que lhe fossem contrário e ataques a membros das comunidades por meio de nota de repúdio e outras declarações, supostamente emitidas em nome de todo o grupo.’’

Trabalhos

Instalada em junho, a CPI das ONGs realizou 30 reuniões, nas quais ouviu 28 depoimentos. Entre as pessoas recebidas, estiveram a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; os presidentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Rodrigo Agostinho, e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Mauro Oliveira Pires; os ex-ministros Ricardo Salles e Aldo Rebelo; e vários representantes de comunidades indígenas e de organizações não-governamentais.

A CPI também realizou cinco diligências externas, viajando aos estados do Acre (duas vezes), do Amazonas, do Mato Grosso e do Pará. Nessas visitas, a comissão apurou denúncias de comunidades locais sobre abuso de poder de autoridades ambientais e de forças de segurança. Também expediu 72 pedidos de informações a diversos órgãos e autoridades. Uma das principais preocupações da CPI com esses ofícios foi saber sobre o financiamento a ONGs com dinheiro público e com recursos vindos do exterior. Os trabalhos do colegiado atenderam a requerimento de Plínio Valério para investigar as atividades de ONGs financiadas com dinheiro público na região da Amazônia entre os anos de 2002 e 2023.

Senado pode criar Comissão Permanente da Amazônia

Dentre as propostas apresentadas no relatório final da CPI das ONGs, há também a previsão da criação de uma Comissão Permanente da Amazônia. De acordo com o relator da CPI, Márcio Bittar, a Comissão será destinada a debater os temas que impactam a região, as necessidades e as dificuldades.

“Será o espaço apropriado para que se avalie a efetividade das políticas públicas impostas à maior parte do território brasileiro. […] entendemos ser importantíssimo que haja um espaço destinado a discutir a Amazônia dentro do Senado Federal. Estamos falando de mais de 60% do território nacional, com todas as suas necessidades e complexidades”, aponta o relatório.

Em seu pronunciamento durante a leitura do relatório, Bittar afirmou ainda que, embora preze pela diminuição dos gastos, considera a criação da comissão necessária. “Como me considero um liberal clássico, acho que o Estado tem que ter o mínimo de tamanho possível. Sempre fui Primeiro-Secretário da Câmara Federal. Até hoje sou espantado com o tamanho do gasto que ela tem — e muitas vezes não produz de acordo com o gasto. Mas eu acho que tudo que nós falamos e vimos, estudamos e ouvimos nessa CPI aponta a necessidade de esse trabalho continuar. E eu não vejo outra maneira mais eficiente de esse trabalho continuar do que o Senado, presidente Plínio, se comprometer de criar a Comissão Permanente da Amazônia”, disse o relator da CPI, Márcio Bittar.

Ao justificar a criação da comissão, o relatório de Bittar pontuou ainda que é preciso “jogar luz sobre os invisíveis da Amazônia”. “Políticas ambientais draconianas impedem o desenvolvimento da região, condenando as pessoas a eterna pobreza. Muito se fala sobre preservar a floresta, mas pouco se fala a respeito das pessoas, dos seres humanos que nela vivem. Desse modo, uma comissão específica para tratar desses temas, bem como, para jogar luz sobre os invisíveis da Amazônia nos parece essencial”, reforçou

* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.