Indígenas Xikrin abrem nova batalha judicial contra a Vale

Etnia do sudeste do Pará processa mineradora em R4 7,7 bilhões por retirada de cobre em área de uso tradicional, corte irregular de castanheiras e poluição de rios que servem aldeias

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Neste mês de julho, os indígenas Xikrin deram início a mais nova investida judicial contra a companhia mineradora Vale S.A., a terceira maior empresa do Brasil, que na semana passada anunciou volumes recordes de produção e distribuição de minério.

Parte desse resultado se deu graças ao sucesso das operações no sudeste do Pará: entre vários outros êxitos produtivos da Vale, o aumento nos volumes de cobre, no segundo semestre de 2018, ocorreu especialmente pelo “forte desempenho da operação de Salobo” − justamente o alvo da recente ação judicial dos Xikrin contra a companhia.

Representada pelo advogado José Diogo de Oliveira Lima, representante das associações indígenas Bayprã de Defesa do Povo Xikrin do Ood-Já, Kakarekre de Defesa do Povo Xikrin do Djudjeko e Porekrô de Defesa do Povo Xikrin do Catetê, a defesa solicita valor a causa em R$ 7.746.435.371,44, que corresponde ao capital social da empresa Salobo Metais S/A.

Salobo não é a mais antiga, nem a maior, nem a mais polêmica operação da Vale no entorno da Terra Indígena (TI) Xikrin do Cateté, mas, segundo os indígenas, está fazendo estragos consideráveis no cotidiano da etnia. Encravada no coração da Floresta Nacional de Tapirapé-Aquiri, de onde extrai 100 mil toneladas anuais de cobre, entrou em operação no ano de 2012, depois de ser alvo de denúncias dos Xikrin e de cobranças de explicações por parte do Ministério Público Federal (MPF).

Com a licença de operação de Salobo vencida, os advogados dos Xikrin querem evitar que a renovação aconteça após análise do Ibama. No xadrez jurídico que essa etnia joga nos tribunais federais contra a Vale, já existem 15 processos ativos entre as duas partes, incluindo Salobo:

“Em razão da ausência de estudos de componente indígena e pelo descumprimento de condicionantes, as licenças emitidas até agora são nulas. Apenas após a apresentação dos estudos e da oitiva das comunidades indígenas é que o Ibama deverá emitir ou não uma nova licença de operação, conforme julgue viável o empreendimento”, argumentam os representantes legais dos indígenas no processo.

Estrangulados pela mineração

A frente contra Salobo não é a única batalha dos Xikrin contra a Vale na região da bacia do Itacaiunas, onde está localizada a TI Xikrin do Cateté. Eles questionam também a operação de Onça Puma, acusada de contaminar com metais pesados as águas do rio que é o centro da vida dessa comunidade e dá nome à sua terra − o Cateté. Esse processo está em fase de perícia técnica, que pode detectar com precisão os impactos da extração e beneficiamento de níquel sobre o rio.

Eles se voltaram também contra S11D, que a empresa apresenta na internet como “o maior projeto de mineração do mundo”, e discutem, ainda, na Justiça, um mecanismo capaz de garantir que as compensações financeiras que a Vale paga pelo empreendimento mais antigo na região − Ferro Carajás − sejam aplicadas segundo uma lógica comunitária pelos indígenas, com o objetivo de assegurar a futura autonomia produtiva e econômica da etnia.

Mas a Vale possui 14 empreendimentos em funcionamento no entorno da TI Xikrin do Cateté. Embora todos tenham impacto sobre o modo de vida tradicional dos Xikrin, não há nenhum cálculo sobre a ação em conjunto desses projetos na vida indígena. Eles se sentem estrangulados pela mineração, que reduz suas possibilidades de deslocamento fora dos limites estabelecidos e é fator de poluição de ar e água na região.

No caso em questão, as vistorias do Ibama no Igarapé Salobo e no Rio Itacaiunas, em trechos próximos à lavra e à usina, revelaram turbidez maior nas águas, o que pode modificar as características de fauna e flora aquáticas. Também foram registrados níveis de elementos químicos e de metais acima dos permitidos − a empresa foi alertada para tomar providências. Os Xikrin temem que esses cursos d’água acabem como o próprio Cateté, rio que dá nome à TI e que apresenta volumes de metais pesados incomuns em seu leito desde que Onça Puma entrou em operação. Uma complexa perícia técnica está em andamento para estabelecer a responsabilidade da mineradora na contaminação.

“Os impactos como um todo são cumulativos. Há Onça Puma, Salobo, um conjunto de operações que não podem ser vistas autonomamente, porque fecham um bloco de influência que atinge a comunidade”, concorda o procurador da República Ubiratan Cazetta.

Entretanto, nem os estudos de impacto nem as decisões judiciais levam em consideração essa sinergia de projetos. “Nesse aspecto, eles estão invisibilizados”, lamenta o representante do MPF.

A profusão de jazidas minerais nessa região habitada pelos Xikrin foi, inclusive, responsável pela retirada de uma parcela de suas terras a oeste, onde hoje está localizada a Mineração Onça Puma, fatos já denunciados pelos indígenas.

Cultura tradicional impactada

O fato de não haver estudo de componente indígena não é mero problema burocrático. No caso de Salobo, esse documento poderia ter alertado a companhia de que a área em que o projeto se instalou é considerada pelos Xikrin de uso ancestral, embora esteja de fato fora dos limites legais de suas terras.

Todos os anos, em novembro, os Xikrin deixam as aldeias no interior da TI Xikrin do Cateté e vão até o vértice dos rios Itacaiunas e Aquiri, onde está localizado um dos melhores castanhais da área, que eles chamam Piu Prodjô. Nesse local eles montam acampamento e permanecem até março, quando termina a safra da castanha-do-pará. Mas ao abrir as clareiras por onde passam as linhas de transmissão de energia, o mineroduto e a estrada de escoamento de Salobo, a Vale derrubou, segundo a nova ação, cerca de 300 castanheiras, que foram abaixo junto com o resto da mata que estava nesses trajetos, informação confirmada pelo ICMBio.

 “Nesse ambiente de mata nativa, a mineração do Projeto Salobo se desenvolveu às custas de derrubadas de centenas de árvores castanheiras, prejudicando sobremaneira a subsistência física e cultural da comunidade Xikrin do Cateté”, ressalvam os advogados dos indígenas na peça jurídica que deu início à ação.

A Vale foi autorizada pelos órgãos ambientais [ICMBio e Ibama], o que não reduz o prejuízo indígena conforme admite o próprio ICMBio: “Todas as supressões vegetais no período de 2009 a 2018 impactam áreas de coleta dos indígenas dentro da Floresta Nacional Tapirapé-Aquiri. O fato dos indígenas da aldeia Xikrin coletarem castanha no interior da floresta é histórico e de conhecimento do órgão licenciador (Ibama), inclusive esta informação está presente nos estudos de impacto ambiental”, reitera o órgão em manifestação à reportagem.

Fora dos gabinetes de Brasília, o cacique Tunira Xikrin explicou com as suas palavras o tamanho do problema: “Lá tinha uma castanheira, todo o inverno a gente ia prá lá, mas agora já foi tudo acabado pela mineração de Salobo”.

Segundo o ICMBio, a mineradora já providenciou o plantio de 50 mil mudas de castanheiras para compensar as derrubadas e “atualmente está recompondo uma área de aproximadamente 500 hectares” − o que para os indígenas não é animador, pois a árvore demora 20 anos para começar a produzir.

Por enquanto, a mineração em terras indígenas está vedada porque falta regulamentar um artigo da Constituição Federal que organiza a atividade, assegurando a soberania dos povos silvícolas sobre a decisão e a participação deles nos resultados financeiros de mineradoras.

A Redação do blog pediu posicionamento da Vale sobre o assunto no final da tarde desta segunda-feira, dia 30. A assessoria de Imprensa informou apenas que “a Vale ainda não foi citada na ação”.