Cientistas não filiados à OMS querem investigar origem da pandemia

China é acusada de esconder origem da pandemia que abalou o mundo
Mercado de Huanan, na China, é um dos suspeitos de propagação do novo coronavírus de humanos para humanos

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Brasília – O relatório com o resultado da investigação conduzida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na China, publicado na terça-feira (30), sobre a origem do novo coronavírus não é conclusivo e um grupo de cientistas não filiados ao órgão querem uma investigação independente. De acordo com o relatório da OMS, mercados chineses que vendiam animais, tanto mortos como vivos, em dezembro de 2019, são a origem mais provável da pandemia, mas não está descartado um acidente de manipulação genética num laboratório de ponta chinês. O que ficou claro é que o governo chinês está escondendo a origem do novo coronavírus responsável pela maior pandemia e catástrofe humanitária desde a 2ª Grande Guerra Mundial, do século passado.

Na coletiva de imprensa que apresentou o relatório, o chefe da equipe de especialistas da OMS, Peter Embarek, garantiu que não foram identificados casos da Covid-19 em Wuhan, na China, antes de dezembro de 2019, quando ocorreu o primeiro surto local da doença. De acordo com o cientista alimentar dinamarquês, foram analisados cerca de 76 mil quadros de febre, pneumonia e doenças respiratórias do sistema de saúde de Wuhan.

Embora o relatório não especifique, de forma exata, o que aconteceu no mercado de Huanan, análises genômicas e inferências baseadas nas origens das doenças sugerem que um animal hospedeiro, possivelmente vendido no mercado, tenha passado o SARS-CoV-2 [nome oficial do novo coronavírus] para os seres humanos, depois de ter sido infectado com um coronavírus prévio em morcegos.

Analisando as primeiras mortes por covid-19

A investigação também avaliou outras duas possibilidades menos prováveis para a pandemia: que o vírus tenha se originado em alimentos chineses contaminados, ou que tenha surgido de um vazamento de laboratórios em Wuhan. Para os especialistas essa última hipótese é a mais improvável.

A pesquisa foi realizada em Wuhan no final de janeiro e início de fevereiro e envolveu cientistas da própria China, Japão, Estados Unidos e Reino Unido. No relatório de 300 páginas, a equipe aponta que, mesmo antes do primeiro surto na China, o vírus já circulava livremente pelo país, e até mesmo fora, uma vez que Wuhan é um grande centro financeiro e recebia muitos estrangeiros em 2019.

Para explorar essa probabilidade, os autores do relatório analisaram sequências de SARS-CoV-2 coletadas de pacientes em janeiro de 2020 e estimaram que elas evoluíram de um ancestral comum entre meados de novembro e início de dezembro de 2019. O vírus, no entanto, apresentava algumas pequenas alterações genéticas, indicando que as infecções não estavam diretamente conectadas entre si.

Mercado de Wuhan

Conforme outra participante da expedição, a virologista neerlandesa Marion Koopmans, o mercado de Wuhan pode ter funcionado como um “catalisador” do novo coronavírus, mas o local não foi o único a reportar casos que provocaram o surto na cidade.

Cultura alimentar dos chineses os obrigaram a comer animais silvestres durante anos de carência alimentar ocasionados por guerras e quebra de safra de suas plantações

A análise das 170 pessoas que tiveram sintomas de covid-19 em dezembro de 2019 revelou que dois terços delas haviam sido expostas a animais vivos ou mortos um pouco antes, e que dez por cento delas viajaram para o exterior. Pesquisadores chineses sequenciaram os genomas do SARS-CoV-2 de alguns desses pacientes e descobriram oito sequências idênticas, todas ligadas ao mercado de Huanan.

Os registros de dezembro de 2019 sobre animais vendidos no mercado mostram aves, texugos, coelhos, salamandras gigantes, dois tipos de crocodilo entre outros. As autoridades chinesas garantem que o mercado não vende nenhuma espécie de mamíferos ou de animais silvestres ilegais. O relatório cita, no entanto, reportagens da mídia local, mostrando animais como guaxinins e cães sendo vendidos normalmente.

“Eles pegam animais exóticos, como civetas, porcos-espinhos, pangolins, cachorros-guaxinins e ratos de bambu, e os criam em cativeiro e depois os vendem nos mercados populares”, disse outro membro da equipe da OMS, Peter Daszak.

Os bichos em questão são animais silvestres que vivem em fazendas legalizadas há ao menos duas décadas pelo governo da China, possivelmente na região de Yunnan. Esses locais ajudaram a reduzir a pobreza na região e costumam fornecer o que é vendido em mercados de frutos de mar como o de Huanan, em Wuhan, epicentro da pandemia em humanos.

Pesquisadores chineses coletaram cerca de mil amostras do mercado de Huanan, de instalações e também de 188 animais de 18 espécies. Todas deram resultado negativo para o agente infeccioso. Embora vírus do pangolim e do morcego tenham se mostrado distantes como hospedeiros diretos do SARS-CoV-2, o relatório aponta que mais estudos sobre fazendas e animais silvestres são necessários.

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, também não ficou inteiramente satisfeito com o resultado das investigações, dizendo que “uma pesquisa mais aprofundada” será necessária e deverá ser implantada em breve. Tudo isso, no entanto, continuará dependendo da boa vontade das autoridades chinesas, o que não ocorreu em nenhum momento da pesquisa atual.

Investigações vão prosseguir

As origens do vírus permanecem obscuras no inquérito da OMS-China

É necessário muito mais trabalho para entender como a pandemia começou, diz o relatório, mas não está claro se Pequim vai cooperar. “Podemos nunca encontrar as verdadeiras origens”, disse um especialista.

Uma equipe de cientistas da Organização Mundial da Saúde falou durante uma coletiva de imprensa em Wuhan, China, no mês passado. Crédito: Ng Han Guan/Associated Press

Por 27 dias, eles procuraram por pistas em Wuhan, visitando hospitais, mercados de animais vivos e laboratórios do governo, conduzindo entrevistas e pressionando as autoridades chinesas por dados, mas uma equipe internacional de especialistas deixou o país ainda longe de compreender as origens da pandemia de coronavírus que matou, até agora, mais de 3 milhões de pessoas em todo o mundo. O Brasil é o país com o maior número de vítimas, enquanto que a China — origem da pandemia e maior população global —, registrou, estranhamente um número ínfimo de mortes pela covid-19.

O relatório contém uma abundância de novos detalhes, mas nenhum novo fato relevante e profundo. E faz pouco para acalmar as preocupações ocidentais sobre o papel do Partido Comunista Chinês, que é notoriamente resistente ao escrutínio externo e às vezes procurou impedir qualquer investigação pela OMS. O relatório também não está claro se a China permitirá que especialistas externos continuem a investigação em solo chinês.

“A investigação corre o risco de não levar a lugar nenhum e talvez nunca possamos encontrar as verdadeiras origens do vírus”, disse Yanzhong Huang, pesquisador sênior de saúde global do Conselho de Relações Exteriores da OMS.

De acordo com o relatório a China ainda não tem os dados ou pesquisas que indiquem como ou quando o vírus começou a se espalhar. Alguns céticos fora do país dizem que a China pode ter mais informações do que admite.

A equipe de especialistas também descarta como “extremamente improvável” a possibilidade de o vírus ter surgido acidentalmente de um laboratório chinês, e a possibilidade abriu um antagonismo de opiniões na comunidade científica. Embora alguns cientistas digam que essa é uma questão importante a ser explorada, outros grupos de cientistas descarta a possibilidade.

O governo chinês, embora conceda certo grau de acesso e cooperação, tem tentado repetidamente desviar a investigação a seu favor. O relatório foi elaborado em conjunto por uma equipe de 17 cientistas de todo o mundo, escolhidos pela OMS, e 17 cientistas chineses, muitos dos quais ocupam cargos oficiais ou trabalham em instituições administradas pelo governo, dando a Pequim grande influência em suas conclusões.

Os cientistas chineses forneceram todos os dados de pesquisa usados no relatório, enquanto os cientistas estrangeiros o revisaram e entrevistaram pesquisadores, médicos e pacientes chineses. Não está claro se a equipe selecionada pela OMS buscou acesso a outros dados ou permissão para coletar mais evidências.

Jesse Bloom, biólogo evolucionista do Fred Hutchinson Cancer Research Center, em Seattle (EUA), disse não estar convencido de que um vazamento de laboratório seja extremamente improvável, depois de ver uma cópia do relatório. Ele disse que concordou que era altamente plausível que o vírus pudesse ter evoluído naturalmente para se espalhar para os humanos, mas não viu nenhum raciocínio no relatório para descartar a possibilidade de uma fuga do laboratório.

Um membro da equipe de especialistas, Peter Daszak, ecologista britânico que dirige a EcoHealth Alliance, um grupo de prevenção de pandemias com sede em Nova York, resistiu às críticas ao trabalho da equipe e ao nível de cooperação da China. Ele disse que a hipótese de vazamento de laboratório foi “política desde o início”. O Dr.º Daszak acrescentou que a equipe da OMS não foi restringida em suas entrevistas com os cientistas que estavam no local no início da pandemia.

Ele próprio foi acusado de ter um conflito de interesses por causa de suas pesquisas anteriores sobre coronavírus com o Instituto de Virologia de Wuhan, que, segundo ele, era o que um ecologista de doenças deveria fazer.

“Estávamos no lugar certo porque sabíamos que havia o risco do surgimento do vírus”, disse o Dr.º Daszak. “Estávamos trabalhando lá com esse grupo viral exato e foi aconteceu, o surgimento de um novo coronavírus”, disse o cientista.

Teoria prevalente

A teoria prevalecente continua sendo a de que o vírus se originou em morcegos, saltou para outro animal e, em seguida, sofreu mutação de uma forma que o permitiu ser transmitido para humanos e de humano para humano. Mas o processo de rastrear as origens de um vírus é notoriamente trabalhoso.

Para responder a inúmeras perguntas restantes, o relatório recomenda mais estudos retrospectivos de infecções humanas, incluindo os primeiros casos, e mais testes de vírus em gado e vida selvagem na China e no Sudeste Asiático. Também pede um rastreamento mais detalhado dos caminhos das fazendas aos mercados em Wuhan, o que exigiria extensas entrevistas e exames de sangue em fazendeiros, vendedores e outros trabalhadores.

Mas não está claro até que ponto a China vai cooperar, e o comportamento secreto e defensivo do país ajudou a alimentar teorias de que, de alguma forma, ela foi a culpada pelo início da pandemia. As autoridades locais em Wuhan primeiro tentaram esconder o surto; Desde então, Pequim expulsou muitos jornalistas ocidentais e divulgou teorias sem evidências sobre o vírus originado em outros lugares — embora os primeiros casos conhecidos tenham sido todos na China, e os especialistas concordam que quase certamente apareceu pela primeira vez lá.

“Temos preocupações reais sobre a metodologia e o processo que envolveu esse relatório, incluindo o fato de que o governo de Pequim aparentemente ajudou a escrevê-lo”, disse o secretário de Estado, Antony J. Blinken, em uma entrevista transmitida pela CNN americana no domingo (28).

O relacionamento cada vez mais áspero da China com os Estados Unidos e outros países também complicou a investigação. O governo Biden criticou repetidamente a falta de transparência da China, incluindo sua recusa em entregar dados brutos sobre os primeiros casos do Covid-19 aos investigadores quando eles visitaram Wuhan. As autoridades chinesas se irritaram, sugerindo que os Estados Unidos deveriam dar as boas-vindas à OMS para examinar a teoria infundada de que o vírus pode ter se originado em um laboratório do Exército dos EUA.

“Nunca aceitaremos as acusações infundadas e a difamação desenfreada dos Estados Unidos na questão da epidemia”, disse Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, em uma entrevista coletiva em Pequim na segunda-feira (29).

Membros da equipe da Organização Mundial da Saúde que investigou as origens do coronavírus se reuniram em Wuhan, China, no mês passado. Crédito: Aly Song/Reuters

Propaganda oficial e investigação independente

Em artigos de notícias bombásticos, os propagandistas chineses saudaram a investigação como um sinal da abertura da China ao mundo e uma justificativa da forma como o governo está lidando com a epidemia.

A OMS está sob pressão para exigir mais dados e pesquisas do governo chinês. Mas, por definição, a agência global de saúde está em dívida com seus países membros, que não concederam à equipe da OMS amplos poderes para realizar, por exemplo, investigações forenses de acidentes de laboratório na China.

Embora grande parte do relatório contenha muitos detalhes sobre estudos moleculares, evolução de vírus e possíveis hospedeiros animais, a seção que trata da possibilidade de um vazamento de laboratório foi, na melhor das hipóteses, superficial. Embora a origem animal do vírus seja amplamente indiscutível, alguns cientistas afirmam que o vírus poderia ter sido coletado e estar presente no laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan, embora os cientistas chineses digam que não. “É a palavra de um contra a de outros que não estão sob o regime chinês”, disse o disse o Dr.º Daszak.

A falta de transparência da China, bem como outras preocupações, levou um pequeno grupo de cientistas não filiados à OMS a convocar neste mês um novo inquérito sobre a origem da pandemia. Eles disseram que tal investigação deve considerar a possibilidade de que o vírus escapou de um laboratório em Wuhan ou infectou alguém dentro dele.

A teoria do vazamento de laboratório foi promovida por alguns funcionários da administração Trump, incluindo o Dr.º Robert Redfield, o ex-diretor dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças, em comentários à CNN americana na semana passada. Ele não ofereceu nenhuma evidência e enfatizou que essa era sua opinião pessoal.

Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.