Sem dinheiro, brasileiro arrisca saúde comprando gêneros alimentícios próximo da data de vencimento

Explodiram as vendas desse tipo de mercado nas grandes cidades
Perigo para a saúde pública, lojas explodiram as vendas logo após o início da alta da inflação

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Brasília – Com a inflação “pela hora da morte”, os chamados “vencidinhos”, um ramo do comércio nas grandes cidades que se especializaram na venda de gêneros alimentícios perto da data do vencimento, expõem à riscos de saúde cada vez mais clientes. A fiscalização é insuficiente, e o que era para ser descartado acaba indo para a mesa do depauperado trabalhador.

O fenômeno está sendo acompanhado pelas autoridades da Vigilância em Saúde Pública que reconhecem que a fiscalização é insuficiente para coibir o limite entre “próximo da data de vencido” do “vencido”.

É quase certa a expansão desse tipo de comércio para a periferia das grandes cidades e das cidades médias, como já acontece em cidades do Entorno do Distrito Federal e demais grandes centros. Para economizar nos alimentos, centenas de pessoas se tornaram clientes fiéis dos chamados “vencidinhos”.

O nome é a forma como os próprios clientes apelidaram essas redes, que oferecem descontos que chegam a até 90%, dependendo do produto e da proximidade da data de validade.

Esse tempo para o vencimento pode variar de dois dias a alguns meses. Quanto mais perto do vencimento, mais barato. “Você chega a pagar R$ 0,10 no [iogurte] Danone”, comenta a cozinheira Marlei Cristiane Aleixo, 37, mãe de seis filhos.

Segundo a Agência Mural, a moradora de Jandira, na região metropolitana, às vezes se locomove até Osasco, cidade da Região Metropolitana de São Paulo em busca de alguma oferta. A cidade tem unidades conhecidas entre os clientes dos “vencidinhos”, como os mercados Mario e Lessa, onde Marlei costuma comprar.

Ela diz que a distância não é um problema, se comparada aos valores das compras que ela faz. “Mesmo que vá de carro e gaste R$ 50 de gasolina, a diferença é de R$ 200, R$ 300 [em relação ao supermercado comum]. É uma diferença bem grande. Daria para fazer outra compra”, explica Marlei.

Quando não consegue ir até a unidade, ela faz compras online. “Não acho alto pagar R$ 60 para levar até Jandira de Osasco, para mim compensa.”

Há 15 anos, a cozinheira conheceu um “vencidinho” em Itapevi, outra cidade da Grande São Paulo, por indicação da mãe e de amigos. Mas foi na pandemia de Covid-19 que esses mercados se tornaram a melhor opção para as compras de sua casa. Agora Marlei recebe ofertas de diferentes unidades por grupos de WhatsApp e Telegram, dois dos mais utilizados aplicativos de troca de mensagens.

“Hoje, 90% das compras que eu faço são neste tipo de supermercado, porque a economia é muito grande. Às vezes tem costelinha de porco e eles vendem 10 kg por R$ 59,90, sai R$ 6 o quilo da carne. No mercado [tradicional] não se paga menos de R$ 16 o quilo”, compara.

É nesses mercados que Marlei compra os lanches para as crianças: “Você encontra pães, bolachas, danones. Eles fazem pacotes por R$ 10 com quatro ou cinco bandejas de Danoninho ou Chambinho.”

Ela ressalta que os produtos são de qualidade. “Nunca fez mal, nunca peguei nada que estivesse com uma qualidade ruim ou com uma aparência ruim. Você compra marcas como Sadia, Aurora, Perdigão”, comemora.

Em Vargem Grande Paulista, a operadora de caixa Karina Rodrigues, 24, começou a frequentar um supermercado do segmento, o “Barato da Vargem”, há um ano.

Ela descobriu o local depois que outros moradores da cidade passaram a comentar as ofertas em grupos do Facebook e agora é cliente assídua.

“Sempre que eu vou fazer as compras do mês, eu vou lá. Eu gasto um valor razoável porque eu deixei de comprar várias coisas no mercado [tradicional]”, explica.

Ela conta que é só no “vencidinho” que consegue adquirir alguns produtos de que gosta: “Peito de peru, por exemplo, são três pacotes por R$ 15. No mercado [comum] é R$ 15 só um. São coisas que eu não teria como comprar”, diz Karina.

Segundo o levantamento da Apas (Associação Paulista dos Supermercados), o IPS (Índice de Preços dos Supermercados) teve alta de 12,57% nos últimos 12 meses. Karina notou o aumento.

“Até mais ou menos um ano atrás, a compra da gente aqui era muito grande. Agora com o mesmo valor, a gente não enche a geladeira”, diz.

Hoje em dia, ela só compra nos supermercados itens como arroz, feijão e produtos de limpeza.

A fotógrafa Junia Soares, 39, cliente assídua do “Vovó Zuzu”, outra loja de “vencidinhos”, diz que: “Compro frios, queijo, carne, danone.”

Ela conta que já chegou a perder alimentos adquiridos na unidade porque não conseguiu consumir a tempo, mas hoje em dia já sabe como lidar com o problema. “Eu aprendi a ir a cada duas semanas para não vencer”.

Lucas Jesus de Souza, 27, é gerente do Mercado Lessa e dono do Mercado Pestana, ambos em Osasco e voltados para o comércio de alimentos com data de validade próxima. Ele explica que as lojas negociam a compra dos produtos direto com as fábricas.

“Chega a data, eles não têm a saída que precisam, então a fábrica precisa jogar fora ou vender mais barato para não ter o prejuízo. É nessa oportunidade que a gente compra e vende mais barato”, diz.

O Mercado Lessa revende os produtos para donos de comércios menores e também atrai clientes de outros locais do Brasil.

“A gente também trabalha com atacado. Vem gente de Sorocaba, zona sul, zona leste de São Paulo, e até mesmo de outros estados “, explica Lucas

“A distância São Paulo – Brasília é percorrida em menos de dois dias por caminhões frigoríficos, graças à qualidade das estradas”, ressalta Damasceno Ribeiro, um cearense que abriu um “vencidinho”, em Ceilândia, mais populosa cidade do Distrito Federal.

Morador do bairro Jaguaribe, em Osasco, Lucas trabalha no ramo desde a adolescência e decidiu abrir o próprio negócio no ano passado, depois de juntar as economias com o amigo e atual sócio, Steylor Christian Silva Sales.

No começo, a dupla contou com a ajuda do “Mercado do Mario” para fortalecer o negócio. Um ano depois, o “Mercado Pestana” recebe cerca de 2.000 clientes por semana.

Falta de segurança alimentar

O economista Rafael Fernandes, 37, diz que o aumento dos preços tem mudado o jeito de fazer compras dos brasileiros. “A partir do momento que o preço dos alimentos se torna mais caro, só que a renda não acompanha esse aumento, você faz com que a população perca o poder de compra”, diz Rafael.

Os mais pobres estão entre os grupos mais afetados pela inflação do mês de fevereiro, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Entre janeiro e fevereiro, o índice de preços para as famílias de renda muito baixa acelerou de 0,63% para 1%. Para Rafael, a alta dos preços impacta diretamente a segurança alimentar das famílias pobres.

“As famílias mais pobres são as principais atingidas, porque elas não têm tantas alternativas. Não tem como trocar um arroz, por exemplo, por outro produto que seja mais barato”, explica. “Você vai diminuir a quantidade de arroz ou vai ter que deixar de comprar algo que não seria tão prioritário, como a bolacha. Você pode comprar o pão, mas não compra a manteiga.

”No Brasil, mais da metade da população vive com algum grau de insegurança alimentar, ou seja, sem ter acesso pleno e permanente a alimentos. Os dados são da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).Morador de Osasco, Rafael também frequenta um “vencidinho”, o “Mercado do Mario”. Para ele, esses comércios têm cumprido um papel importante para as famílias das periferias.

“Não acredito que eles estejam aí para disputar com supermercados e hipermercados de linha de varejo, até porque dificilmente você vê alguém fazendo uma compra que dure para o mês dentro de um mercado desses”, compara.

“É algo que você vai consumir rápido. Então tem sido uma alternativa para periferia para que ela possa ter acesso a produtos que ela ou não conseguiria comprar ou pagaria um valor muito maior nos mercados tradicionais.”

Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.