Música: Crescem delitos praticados por artistas fantasmas nas plataformas de streaming musicais; entenda a fraude

Criminosos sequestram músicas, postam no streaming e roubam direitos dos autores
David Post, à esquerda, e Craig Blackwell, da banda Bad Dog; os músicos foram forçados a fazer um curso intensivo sobre fraude de streaming, um reino sombrio que custa a artistas US$ 2 bilhões por ano Foto: Greg Kahn/The New York Times

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Um sofisticado golpe aplicado por “artistas fantasmas” tem atingido músicos e compositores em todos os lugares. Vasto e misterioso, o mundo das fraudes de streaming de música constantemente inventa novas maneiras de roubar os US$ 17 bilhões anuais de royalties destinados a artistas, que pedem providências das empresas e das autoridades.

Sucessivas surpresas têm gerado cada vez mais aflição à músicos e autores no universo da web, como os caras da dupla Bad Dog, uma dupla folkie da capital Washington, capital norte-americana, que não estavam esperando ficar ricos com o álbum que gravaram no último verão americano. David Post e Craig Blackwell são amadores devotos há décadas e há muito tempo não sonham com turnês e limusines. No máximo, queriam um CD para dar de presente em uma festa caseira em dezembro passado.

Mas não muito depois de The Jukebox of Regret ter sido concluído em julho e postado no SoundCloud, quase todas as músicas do álbum apareceram de alguma forma no Spotify, Apple Music, YouTube e pelo menos uma dúzia de outras plataformas de streaming. Isso poderia ter sido considerado uma surpresa agradável, exceto por uma reviravolta bizarra: cada música tinha um novo título, anexado ao nome de um artista diferente.

Esse embaralho misterioso poderia ter passado despercebido. Mas, por acaso, foi descoberto quando quem produziu o álbum postou uma das músicas na conta do Instagram do próprio estúdio. Para surpresa dele, o Instagram marcou automaticamente a música Preston, de Bad Dog, como uma música chamada Drunk the Wine, de Vinay Jonge — um “músico” sem nenhuma canção anterior e sem perfil na Internet. Ele parecia não existir.

A extensão total desse assalto logo ficou clara. Pop Song, de Bad Dog, havia se tornado With Me Tonight, de alguém chamado Kyro Schellen. The Misfit havia se transformado em Outlier, de Arend Grootveld. Verona se tornou I Told You, de Ferdinand Eising. E assim por diante. Mesma música, nomes de faixas diferentes e creditadas a artistas diferentes, nenhum dos quais tinha outras músicas ou qualquer perfil na internet.

A situação ficou ainda mais estranha. A Disc Makers, empresa de produção de CDs contratada pela banda, estava prestes a começar a prensar cópias do álbum e, como parte da rotina de diligência, passou os metadados das músicas — impressões digitais, essencialmente — por um programa criado para determinar se eram originais. Não eram, segundo o programa. Quem quer que tenha pirateado as faixas, também se apropriou das impressões digitais.

Para todos os efeitos, as músicas da Bad Dog agora pertencia a outra pessoa. A Disc Makers não imprimiria os discos até que a banda provasse que era proprietária das músicas de Jukebox, o que significava que a dupla não poderia nem mesmo receber um CD para distribuir.

“Parecia que alguém tinha entrado na minha casa e roubado meus bens mais valiosos”, disse Blackwell. “E não é que eu esteja querendo ganhar US$ 10 com o Spotify. É uma questão de atribuição”.

Poucos no ramo já ouviram falar desse tipo de sequestro musical. Isso inclui a Bad Dog, que passaria semanas tentando recuperar as músicas, com pouco sucesso. A briga foi enlouquecedora, embora tenha ocorrido em um território que os dois membros da banda conhecem bem. Blackwell, 58 anos, é um advogado que se dedica aos direitos de propriedade intelectual. Post, 72 anos, é um professor de direito aposentado que se especializou em direitos autorais na Internet.

Apesar das formações, os dois homens foram surpreendidos pelo vasto e misterioso mundo das fraudes de streaming de música, um reino em que piratas anônimos estão constantemente inventando novas maneiras de roubar os US$ 17 bilhões anuais de royalties destinados aos artistas que realmente são os autores proprietários das obras.

Esse é um pote de ouro gigante e tentador para os golpistas de todo o mundo. A Beatdapp, uma empresa de Vancouver, no Canadá, que detecta fraudes para clientes do setor, estima que um pouco mais de 10% desse pote, cerca de US$ 2 bilhões, é roubado anualmente.

“Os malfeitores estão ficando criativos”, disse Andreea Gleeson, da Music Fights Fraud Alliance, um grupo de gravadoras, distribuidores e plataformas de streaming. “É um alvo em constante movimento”.

O Spotify e rivais deveriam ter acabado com a era da pirataria musical. No final da década de 1990 e início da década seguinte, milhões de fãs baixavam rotineiramente músicas de serviços de arquivos online peer-to-peer sem pagar um centavo, um fiasco que custou uma fortuna ao setor. Quando surgiram os serviços de assinatura mensal (como o Spotify) e as ofertas de pagamento por música (a versão inicial do Apple Music), os músicos e as gravadoras finalmente tiveram uma maneira lucrativa de usufruir da conveniência da música online.

Mas o ecossistema de streaming, segundo os críticos, é facilmente burlado. Por US$ 20, os artistas podem comprar uma assinatura anual de um distribuidor de música, uma empresa que pode publicar músicas instantaneamente em dezenas de plataformas de streaming. Infelizmente, os malfeitores têm a mesma oportunidade.

Alguns profissionais de marketing foram pegos tentando melhorar o perfil de artistas legítimos, geralmente com “fazendas de robôs” programados para tocar músicas repetidamente. Mais frequentemente, porém, os golpistas simplesmente criam faixas de ruído branco ou músicas geradas por inteligência artificial nos próprios computadores.

No mundo do streaming, 40 segundos de ruído são tão música quanto uma canção como Hey Jude, dos The Beatles. Para conseguir ouvir essas faixas, os fraudadores compram logins de contas legítimas no Spotify e em outros serviços de forma barata e em massa na dark web. Em seguida, os bots reproduzem essas faixas repetidamente sem que os titulares das contas percebam que foram hackeados.

“Se você já recebeu uma recomendação de uma música e pensou: ‘Isso é estranho, eu não ouço isso’, agora você sabe por quê”, disse Andrew Batey, da Beatdapp.

Andrew Batey, da Beatdapp, uma empresa de Vancouver que detecta fraudes de streaming para clientes do setor Foto: Agnes Lopez/The New York Times

Batey já viu outras travessuras de streaming que são difíceis de explicar. Como uma conta em uma plataforma que gerou 694.000 ouvintes em uma semana. Ou uma conta que apareceu em uma dúzia de países em 40 dispositivos diferentes no mesmo período de tempo.

As plataformas de streaming digital tentaram impor novas regras que dificultam a monetização do ruído. Uma consequência não intencional é que as músicas criadas por humanos se tornaram mais valiosas para os fraudadores — especialmente as músicas de artistas que não estão interessados em ganhar dinheiro com plataformas de streaming pagas. Isso pode ter feito do Bad Dog um alvo atraente.

A dupla se conheceu no início dos anos 90, quando ambos eram associados em um grande escritório de advocacia, Wilmer Cutler & Pickering (hoje chamada WilmerHale). Post tocava banjo, Blackwell violão e a dupla improvisava no telhado dos escritórios da empresa, usando paletó e gravata em horários do intervalo do trabalho.

“As pessoas iam até lá e nos ouviam”, lembra Blackwell. O público era pequeno, o que talvez tenha sido melhor assim. “Naquele momento”, disse Post, “não éramos nada bons”.

A banda lançou uma fita cassete com seis músicas em 1995, elogiada pelo The Washington City Paper pela música que “distorce o gênero de maneiras interessantes, embora suaves”. A dupla tocou junto, indo e voltando ao longo das décadas, mas sempre considerou a música como um hobby apaixonado. Com a maior parte da energia direcionada para as respectivas carreiras jurídicas.

Post deixou a Wilmer para trabalhar como secretário da juíza Ruth Bader Ginsburg na Suprema Corte. Em 1994, ele entrou para a Georgetown Law School e se aprofundou no então novo mundo do direito cibernético. Na época, os proprietários de direitos autorais estavam prevendo que a internet significaria o Armagedom para músicos, autores e outros criadores de propriedade intelectual.

Internautas desatentos publicariam tudo online, onde seria baixado gratuitamente, destruindo o valor dos esforços criativos. Assim, os proprietários de conteúdo pressionaram para obter os direitos autorais mais robustos possíveis. Post reagiu.

“Os detentores de direitos autorais estavam adotando essa abordagem de ‘erguer barricadas’, dizendo que a internet nos matará, que ela é devastadora e que devemos processar as plataformas”, disse ele. “Eu não estava do lado dos infratores. Eu só achava que os direitos autorais são muito rígidos, duram muito tempo e reduzem a criatividade.” Quando os direitos autorais são muito amplos, explicou ele, outras pessoas não podem pegar emprestado, citar e se inspirar de maneiras que levem a mais arte.

Post manteve essa filosofia por décadas, mas ela foi testada após o roubo de The Jukebox of Regret. O mais desagradável foi o fato de a conexão da Bad Dog com as músicas ter sido completamente apagada.

“Inicialmente, eu tinha em minha cabeça a imagem de alguém dizendo: ‘Encontrei esses caras em Washington que lançaram esse álbum; é muito bom’”, disse Post. “Mesmo que eles tivessem ganhado dinheiro com isso, não teria problema algum para mim”.

Para recuperar as músicas, Post e Blackwell enviaram o que se chama de notificações de remoção, ou solicitações formais de remoção de músicas piratas, para vários sites. Os membros da banda usaram a página no SoundCloud para demonstrar que as gravações eram anteriores a todos os uploads nas plataformas de streaming.

Dois sites responderam com bastante rapidez. A Amazon Music removeu as músicas em cerca de uma semana. O YouTube logo em seguida.

Outras plataformas ofereceram pouco mais do que e-mails enlatados. (“Sua reivindicação será processada por nossa equipe”, respondeu o Spotify.) O Apple Music também enviou uma carta padrão, embora incluísse uma pista tentadora: o nome da empresa que havia feito o upload das músicas. Era a Warner Music, uma das três grandes gravadoras.

Em 5 de dezembro, o The New York Times enviou um e-mail ao departamento de relações públicas da Warner. Um porta-voz da empresa analisou o assunto e logo depois disse que o upload das músicas havia sido feito por meio de uma subsidiária chamada Level, uma distribuidora de música que atende a artistas independentes. (“Seu lançamento, agilizado”, diz a empresa em site.)

Por uma taxa anual de US$ 20, a Level faz o upload de áudio para uma longa lista de plataformas de streaming digital. Ela pede apenas que os clientes marquem uma caixa e concordem com os termos de serviço, que incluem a promessa de não publicar nenhum áudio de propriedade ou criado por outra pessoa.

A Warner agiu rapidamente. Em 6 de dezembro, a empresa removeu todas as versões piratas das músicas do Bad Dog de todos os sites. (A empresa não quis comentar como.) Logo depois, qualquer pessoa que digitasse “Vinay Jonge” no Deezer, a plataforma francesa de música online, recebia uma página de erro.

Até então, as músicas do Bad Dog já haviam sido tocadas mais de 60 mil vezes no Spotify. O número sugere que o fraudador encontrou uma maneira de gerar ouvintes para a música, mas não em números que levantassem suspeitas. Pelas taxas do Spotify, todas essas audições se traduziriam em pouco mais de US$ 250.

Parece uma ninharia, embora somas adicionais tenham sido obtidas por meio de outras plataformas, portanto é impossível saber quanto o roubo da Bad Dog realmente rendeu. E parece provável que outros artistas tenham sido hackeados da mesma forma.

Esse é um golpe escalável, disse Batey, da Beatdapp. O SoundCloud conta com mais de 320 milhões de músicas, muitas delas trabalho de artistas amadores de fim de semana. Essas pessoas talvez nunca percebam que o trabalho foi capturado e renomeado e que está desviando dinheiro do pool de royalties.

“Essa não será a última vez que alguém pensará: ‘Ei, tem uma brecha aqui. Talvez possamos explorar essa brecha com dezenas de milhares de artistas’”, disse Batey.

A saga levanta muitas questões. Por exemplo, quem estava por trás dessa fraude específica? Será que a Level conduziu uma pesquisa de impressões digitais e não percebeu que todas as músicas foram carregadas anteriormente no SoundCloud? Ou ela ignora essas pesquisas?

Infelizmente, grande parte do setor musical é tão tagarela quanto um banco suíço. O SoundCloud não quis comentar. Um representante da Warner Music, que respondeu às perguntas da Level, não quis dizer quem havia feito o upload das músicas da banda para a Level, citando a política da empresa.

“Levamos as questões de fraude e roubo muito a sério e cooperamos com as autoridades em qualquer investigação”, escreveu o porta-voz da Warner em um e-mail.

Um porta-voz do Spotify disse que a filtragem de músicas roubadas era tarefa dos distribuidores de música.

“Em última análise, confiamos nas declarações de nossos provedores de conteúdo de que o conteúdo que eles fornecem não está infringindo [direitos autorais]”, disse Laura Batey, do Spotify (sem relação com Andrew Batey). Depois de receber uma notificação de retirada da Bad Dog, ela acrescentou, o Spotify sinalizou o problema para a Warner Music.

Só o que Craig Blackwell e David Post queriam era lançar um CD para distribuir aos amigos Foto: Greg Kahn/The New York Times

Os membros da Bad Dog ainda estão tentando entender o que aconteceu. Blackwell é o mais indignado. Ele está especialmente furioso com a Warner Music, embora não planeje tomar medidas legais (os danos são emocionais, não financeiros).

“Eu não conseguiria fechar um contrato com a Warner nem para salvar minha vida”, disse ele. “Mas eles ganharam dinheiro com minha música, e esse dinheiro veio de uma violação objetiva.”

Para Post, os últimos meses foram esclarecedores. Ele ainda apoia as amplas proteções oferecidas às plataformas online. Mas algumas falhas agora são óbvias. A lei atual parece inadequada para um mundo em que a violação pode ocorrer em escala industrial.

“Em 1997, não creio que as pessoas estivessem pensando nessa operação automatizada que simplesmente suga o material desprotegido, o rejusta para torná-lo impossível de ser encontrado e o carrega para plataformas onde podem começar a monetizá-lo”, disse ele. “Isso não estava no radar de ninguém.”

Além disso, o sistema de notificação e retirada, pelo menos nesse caso, não funcionou. As notificações foram enviadas e, no caso do Spotify e de outros, pouco aconteceu.

A comunicação com a parte “old-school” do setor musical foi muito mais fácil. A Bad Dog convenceu a Disc Makers de que realmente compôs todas as músicas de Jukebox — o link do SoundCloud ajudou — e a empresa imprimiu 100 CDs. Eles ficaram prontos a tempo para a festa de lançamento, em 2 de dezembro, um evento do tipo “traga sua própria cerveja” no Palisades Hub, em Washington.

Distribuir o disco pode ter sido o maior desafio da noite; poucas pessoas têm CD players atualmente. O show ao vivo, por outro lado, foi tranquilo e arejado, e incluiu um intervalo para comer biscoitos no final do primeiro set. (Toffee diamonds, biscoitos de geleia e merengues de pistache, todos feitos por um fã da Bad Dog).

Hoje, a evidência do trabalho manual do pirata continua viva, teimosamente, em pelo menos um lugar. Abra o Shazam, o aplicativo de identificação de músicas de propriedade da Apple, e deixe-o ouvir “Preston”. Alguns segundos depois, o aplicativo oferecerá um título familiar: Drunk the Wine, de Vinay Jonge.

Fonte: The New York Times

* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em Brasília.