Brasília – Após prestar juramento de obediência à Constituição e assinar o Termo de Posse na sessão conjunta extraordinária no Congresso Nacional, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), acompanhados de suas esposas, desfilaram em carro aberto até a rampa de acesso ao Palácio do Planalto, onde aproximadamente 40 mil pessoas aguardavam quem entregaria a faixa presidencial ao vencedor do segundo turno das eleições mais disputadas da história do Brasil.
Segredo guardado a sete chaves pela coordenadora da posse presidencial, Janja Lula da Silva, nova primeira-dama do país, foi mantido suspense até o último minuto sobre como e quem colocaria no novo presidente a faixa presidencial, criada e introduzida no rito da solenidade, pela primeira vez, em 1910. Jair Bolsonaro (PL), o presidente cujo cargo expirou às 23h59 do dia 31 de dezembro, viajou para fora do país, para o estado da Flórida, nos Estados Unidos, se recusando a passar a faixa ao sucessor, num gesto considerado deselegante e mal educado.
O rito de entrega da faixa presidencial a Lula foi feito fora do protocolo tradicional. Um grupo de pessoas de setores representativos da sociedade, considerados minorias, ficou encarregado de levar a faixa até o novo presidente. O grupo também subiu a rampa ao lado de Lula.
Apesar de um pouco menos incisivo, de forma semelhante ao discurso no Congresso, Lula focou em críticas ao governo Bolsonaro ao discursar para o público concentrado na Praça dos Três Poderes. Era esperada uma mensagem mais conciliatória para dar o pontapé inicial ao novo governo, mas Lula insistiu em um discurso do “nós contra eles” e investiu em ataques variados ao governo do antecessor.
Em vários momentos o novo presidente mencionou a importância da união do país, sempre seguido de críticas. Lula acusou apoiadores do governo anterior de ódio, violência e fake news; disse que durante a pandemia da covid-19 a sociedade enfrentou, além do vírus, um governo “negacionista”, “irresponsável” e “desumano” e chegou a dizer que nos últimos quatro anos houve a “construção de um genocídio”.
Na fala, de aproximadamente 30 minutos, ele também citou futuras prioridades do seu governo, em especial, na redução da desigualdade social, e em exaltar feitos de seus mandatos anteriores.
Lula foi contraditório em várias passagens do discurso, mas prometeu que governará para todos e não só para quem votou nele. Como era de se esperar, a fala não convenceu bolsonaristas que prometeram também, só que nas redes sociais, manter vigília contra um governo que não reconhecem como legítimo. Um dos manifestantes perguntou: “Fizeram vigília de 580 dias para esse (…) e nós não vamos admitir que esse governo ilegítimo nos expulse dos nossos acampamentos. Só é democracia para eles?”.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, prometeu desmontar, com uso de força policial, os acampamentos em protesto ao novo governo, a maioria localizada na frente de quartéis militares.
Discurso do Parlatório
Ao lado do vice-presidente Geraldo Alckmin e suas respectivas esposas, o presidente recém-empossado iniciou discurso agradecendo as pessoas que estiveram presentes na vigília “Lula Livre”, em frente à Polícia Federal (PF), em Curitiba, onde ficou preso durante 580 dias após condenação em segunda instância, acusado de corrupção. Lula também agradeceu aos apoiadores de sua campanha.
Ele afirmou que governará para todos, independentemente de visões políticas diferentes. “Vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância. A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra. É hora de reatar os laços com amigos e familiares, rompidos pelo discurso de ódio e pela disseminação de tantas mentiras. A disputa eleitoral acabou,” disse.
Lula afirmou também que desde sua primeira gestão, o Brasil “andou para trás” e que muito do que fez em relação à desigualdade social e pobreza foi desfeito de forma “irresponsável” e “criminosa” pelo governo Bolsonaro. Ele se emocionou, chegando às lágrimas, ao falar sobre a fome no país.
O novo presidente afirmou que se comprometeria a combater todas as formas de desigualdade no país – de renda, gênero, raça, representação política, carreiras no Estado, acesso à saúde e educação, entre outras.
“É inaceitável que continuemos a conviver com o preconceito, a discriminação e o racismo. Somos um povo de muitas cores, e todas devem ter os mesmos direitos e oportunidades. Ninguém será cidadão de segunda classe, ninguém terá mais ou menos amparo social, ninguém será obrigado a aceitar mais ou menos obstáculos apenas pela cor da sua pele,” disse ao anunciar a criação do Ministério da Igualdade Racial. Em seguida falou sobre outras pastas a serem criadas em seu governo, como a dos Povos Indígenas e das Mulheres.
Ao mencionar feitos de seus dois mandatos anteriores, declarou que o que o Partido dos Trabalhadores fez em 13 anos “foi destruído em menos da metade desse tempo”. Ao justificar a declaração, mencionou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o qual chamou de “golpe”, e o mandato de Bolsonaro.
Contraditório
Numa estratégia de morde e assopra, ao comentar os trabalhos do gabinete de transição, cujos integrantes fizeram relatórios sobre a situação do governo Bolsonaro, Lula disse que nos últimos quatro anos “o povo brasileiro sofreu lenta e progressiva construção de um verdadeiro genocídio”.
Ele também acusou o governo de ter feito “desmontes” em políticas públicas em áreas como igualdade racial, juventude, direitos indígenas, saúde e educação. Nesse momento, o público participante passou a gritar um coro de “sem anistia”, em referência a uma aventada culpabilização de Bolsonaro por supostos crimes contra a população praticados durante a pandemia.
Lula chegou a classificar o mandato de Bolsonaro como “um dos piores períodos da história, uma era de sombras e incertezas e sofrimento”. Em seguida, passou a falar sobre resolução de diferenças e união em prol do Brasil.
O presidente aproveitou para falar sobre prioridades de investimento em seu mandato, como geração de empregos, redução dos preços de alimentos, criação de vagas em universidades, investimento em saúde, educação, ciência e cultura, para em seguida emendar novas falas de reconciliação.
“Não é hora para ressentimentos estéreis. Agora é hora de o Brasil olhar para a frente e voltar a sorrir. Nosso desafio comum é a criação de um país justo, inclusivo, sustentável e criativo, democrático e soberano para todos os brasileiros e brasileiras,” disse.
Lula encerrou a mensagem retomando o embate com opositores: “Que estejamos sempre prontos a reagir, em paz e em ordem, a quaisquer ataques de extremistas que queiram sabotar e destruir a nossa democracia. Na luta pelo bem do Brasil, usaremos as armas que nossos adversários mais temem: a verdade, que se sobrepôs à mentira; a esperança, que venceu o medo; e o amor, que derrotou o ódio”.
Faixa presidencial
O novo presidente da República recebeu a faixa presidencial, símbolo maior do chefe do poder Executivo, de um grupo de oito pessoas escolhidas para representar a população. Tradicionalmente, a faixa é entregue pelo antecessor no cargo, mas o agora ex-presidente Jair Bolsonaro se recusou a participar do ato e viajou para fora do Brasil na última sexta-feira (30). Hamilton Mourão, então presidente em exercício, também declinou da tarefa.
Com isso, coube ao PT e ao cerimonial da posse, chefiado pela primeira-dama Rosângela “Janja” Lula da Silva, escolher um grupo de pessoas para desempenhar esse papel simbólico da democracia brasileira. Conheça abaixo quem foram os escolhidos.
Francisco
Francisco, de 10 anos, representou as crianças que moram na periferia do país. Ele reside em Itaquera, baixo da cidade de São Paulo. É filho de uma assistente social e de um advogado, ambos atuantes em causas sociais. Torce para o Corinthians e faz natação, tendo ficado em primeiro lugar em 2022 no campeonato da Federação Aquática Paulista.
Aline
Aline Sousa, de 33 anos, é catadora de recicláveis e mãe de seis filhos. Sua mãe e avó materna também são catadoras na cooperativa Rede CENTCOOP, do Distrito Federal, que Aline preside há três mandatos. Ingressou no Movimento Nacional de Catadoras como articuladora nacional em 2013, representando os catadores e catadoras do DF. Atualmente é responsável pela Secretaria Nacional da Mulher e Juventude da Unicatadores. Coube a ela colocar a faixa em Lula, representando todo o grupo.
Raoni
O cacique Raoni Metuktire, de 90 anos, é um dos indígenas brasileiros mais conhecidos no mundo. Ele é reconhecido por indígenas e ribeirinhos da Amazônia como um dos principais representantes da luta pela preservação da floresta e dos povos amazônicos. Da aldeia Kraimopry-yaka, onde nasceu, o cacique já rodou o mundo.
Weslley
Weslley Viesba Rodrigues Rocha, de 36 anos, é metalúrgico do ABC paulista desde os 18 anos. Natural de Diadema, é casado e pai de dois meninos, Cauã de 18 anos e Apolo de 2 meses. Formou-se em Educação Física com o auxílio do Programa de Financiamento Estudantil (Fies). Também possuios cursos técnicos profissionalizantes de Desenho Técnico, Matemática Aplicada, Eletricista e Comandos Elétricos, do SENAI da Escola Livre para Formação Integral “Dona Lindu”. Weslley ainda é DJ em um grupo de RAP chamado ‘Falange’ e conta sua caminhada e luta através da música.
Murilo
Murilo de Quadros Jesus, 28 anos, é professor, formado em Letras/Português e Inglês (UTFPR), e mora em Curitiba. Atuou como professor de português como língua adicional na Universidad de La Sabana (Bogotá, Colômbia), entre 2016 e 2017, e foi bolsista Fulbright como professor de português na Bluefield College (West Virginia, EUA), entre 2021 e 2022.
Jucimara
Jucimara Fausto dos Santos, paranaense nascida em Palotina e hoje moradora de Maringá, é cozinheira. Ela foi voluntária no acampamento Lula Livre, em Curitiba, fazendo refeições e pão para os militantes por cerca de dez meses. Hoje cozinha na Associação dos Funcionários da Universidade Estadual do Maringá e faz pães para doação.
Ivan
Natural do Rio Grande do Norte, Ivan Baron teve paralisia cerebral aos 3 anos por causa de uma meningite viral. Ele é considerado um embaixador da inclusão de pessoas com deficiência.
Flávio
Flávio Pereira, 50 anos, é natural de Pinhalão (PR). Ele é artesão e participou do acampamento “Lula Livre”, em Curitiba, por 580 dias, ajudando nas atividades diárias e rotineiras como voluntário.
No mesmo dia em que cumpriu os ritos da solenidade de posse, Lula assinou várias medidas provisórias e decretos presidenciais publicados em edição extra do Diário Oficial da União.
Por Val-André Mutran – de Brasília