Inspeção no Pedral do Lourenço confirma falhas do licenciamento e falta de consulta a comunidades

Audiência pública e visitas a comunidades foram realizadas pela Justiça Federal a pedido do MPF
(Foto: Comunicação/MPF)

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A inspeção judicial realizada esta semana pela Justiça Federal em comunidades ribeirinhas na área do Pedral do Lourenço, no sudeste do Pará, consolidou as críticas levantadas pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre as fragilidades e ilegalidades dos estudos socioambientais e a violação do direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) aos povos e comunidades tradicionais no processo de licenciamento das obras para explosão das rochas e retirada de bancos de areia desse trecho do rio Tocantins.

Para o MPF, a iniciativa da Justiça Federal, que na segunda-feira (29) incluiu uma audiência pública na Vila Tauiry, e visita à comunidade de Praia Alta, em Itupiranga, e na terça-feira contou com visita à Vila Saúde, também em Itupiranga, e à comunidade Pimenteira, em Novo Repartimento, teve como principal resultado a possibilidade de que integrantes de comunidades tradicionais pudessem, enfim, ser ouvidos. As falas de pescadores, quebradeiras de coco, quilombolas e ribeirinhos evidenciaram que a obra está sendo conduzida sem o conhecimento necessário sobre os impactos locais e sem a devida participação das populações afetadas.

Por exemplo: o licenciamento prevê que, antes da explosão de rochas, serão emitidas vibrações sonoras na água para afugentar os peixes. No entanto, o presidente da Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiry (Acrevita), Ronaldo Barros Macena, ensinou que na região há muitas espécies de peixes que têm um comportamento contrário ao que o licenciamento prevê: há espécies que se escondem nas fendas do pedral quando há barulho, e outras espécies nadam em direção ao barulho.

O pescador Josias Pereira de Sousa confrontou diretamente a proposta de compensação de um salário mínimo apresentada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), com base em sua própria realidade. “Dias atrás aí, esse mês atrás agora de setembro, eu tava pescando, eu tenho como comprovar: eu produzi 3 mil e 300 e poucos quilos de mapará. Vendendo ele a R$ 4, fiz R$ 12 mil e poucos. Como é que eu vou me conformar hoje que a pessoa vem me dar uma migalha de um salário mínimo?”, questionou Josias, sob aplausos, na audiência em Tauiry.

A complexidade e a riqueza do conhecimento tradicional sobre a pesca e a preocupação de perdê-la foram detalhadas pela pescadora e liderança comunitária Maria Eunice Silva, da comunidade Pimenteira. Ela explicou as diferentes técnicas utilizadas, como a “linha boiada” e a “linha quibada”, e os peixes-alvo de cada uma, demonstrando um conhecimento profundo que, segundo os comunitários, não foi captado pelos estudos oficiais. “Olha, a gente pesca no canal do rio. Quando passa uma balsa, passa três dias, quatro dias, cinco dias, você pode botar ali que você não pega um peixe. (…) Vai tirar o alimento dos nossos filhos. Porque da onde a gente tira o nosso sustento é do canal do rio, gente. É a nossa pescaria do mapará, a nossa pescaria que a gente pesca, gente, é na caceia, a gente pesca com a nossa linha boiada. Se as balsa passar, elas levam, como já fez isso aqui”, lamentou.

Cientistas confirmam erros

As professoras Cristiane Vieira da Cunha, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), e Rosália Furtado Cutrim Souza, da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), reforçaram tecnicamente a crítica à falta de estudos adequados. “Metodologicamente – e eu trabalho com monitoramento de pesca há mais de dez anos –, metodologicamente a gente não consegue ter um marco zero com quatro meses de monitoramento. É impossível”, afirmou Cristiane Cunha. O chamado marco zero é a caracterização detalhada do cenário existente antes da implantação do empreendimento. É essencialmente uma “fotografia” das condições ambientais e socioeconômicas da área antes que as obras comecem.

“Realmente, em quatro meses não se faz monitoramento. Porque a pesca tem a safra, tem a migração dos peixes e nada é pontual. Nem o peixe, nem o pescador. Os municípios têm limite, mas a pesca não tem limite. O peixe ele fica aqui, ele fica ali, ele é de toda área e o pescador também: onde tem peixe é que vai o pescador (…) E eu já falei isso para o Dnit: que não vai impactar somente lá em cima. Todos os pescadores que fazem uso desse local vão ser impactados”, complementou Rosália Furtado Cutrim Souza.

A professora Cristiane Vieira da Cunha também apontou que o Diagnóstico Socioambiental Participativo (DSAP) foi realizado de maneira incorreta. Das 651 pessoas entrevistadas, 69% eram da zona urbana de Itupiranga. “Ou seja: as comunidades, os pescadores que realmente estavam no território e estão no território não foram entrevistados por essa metodologia. Essa metodologia ela trouxe um viés na pesquisa”, ressaltou.

Segundo a pesquisadora, o estudo de impacto ambiental não respondeu a nenhum dos seguintes pontos que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tinha requisitado: informações básicas sobre número de pescadores de cada grupo, caracterização das comunidades, existência de pesqueiro, rota de pesca, quantidade e qualidade das embarcações, os métodos empregados na pescaria, peixes-alvo, o desembarque médio, quantos vivem exclusivamente da pesca, e outras formas de vida, entre outras questões não respondidas.

Apesar de o Dnit alegar que faria o cadastramento de pescadores que pescam na área de influência, independentemente de onde moram, as comunidades expressaram grande preocupação, pois todos os programas de compensação, educação ambiental e quelônios estão sendo baseados pelo diagnóstico.

Falta inclusão e consulta

As reivindicações mais frequentes durante toda a inspeção foram pela inclusão, nos estudos socioambientais, de comunidades até agora esquecidas pelo licenciamento, e a exigência da realização da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI). Representantes de diversas comunidades, como Cajazeiras, Porto Novo e Pimenteira, afirmaram nunca terem sido oficialmente comunicados sobre o projeto, e muito menos consultados de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e sim apenas informados em reuniões pontuais ou simplesmente ignorados.

“Nós não tivemos, pelo menos nós, a consulta prévia. E aí nós queremos saber o porquê que isso aconteceu, porque nós também fazemos parte dessas comunidades”, questionou Raimunda dos Santos, da comunidade de Cajazeiras, durante a audiência pública em Vila Tauiry. Mariclea  Gomes, moradora da Vila Porto Novo, reforçou a queixa de exclusão: “Nós estamos aqui para dizer ‘por que que nós não estamos inclusos?’. Nós requeremos que seja feita a consulta prévia, livre e formada, para que nós sejamos ouvidos, porque nós existimos.”

A distinção entre uma simples entrevista e uma consulta genuína foi um ponto crucial levantado pelas comunidades e pelo MPF. Em sua fala, o procurador da República Sadi Machado indicou um dos prováveis motivos de a consulta não ter ocorrido: “A consulta presume que a comunidade possa dizer não. Então é por isso que a comunidade não está sendo consultada. Ela está sendo pesquisada, entrevistada. O Dnit chegou a afirmar numa audiência pública no Senado Federal que bateu um papo com as comunidades. Bater um papo não é consultar”.

Essa percepção foi confirmada pelo pescador Erlan Moraes, da Comunidade Agroextrativista Ribeirinha Praia Alta, que relatou ter participado de reuniões isoladas. “Foi basicamente para mostrar as coisas que a gente sempre vê”. O procurador da República Rafael Martins da Silva perguntou: “Mas foi só você?”. “Da comunidade só eu”, respondeu Moraes, evidenciando a falta de um processo mínimo de diálogo com a comunidade.

Balanço do MPF

Ao final da inspeção judicial, membros do MPF que acompanharam a diligência avaliaram o resultado como um marco fundamental para o processo. O sentimento unânime é de que a visita às comunidades validou, na prática, os argumentos que o MPF vem sustentando desde o início da ação civil pública.

Para o procurador da República Rafael Martins da Silva, a inspeção foi essencial para que o Judiciário pudesse constatar a realidade local. “O MPF solicitou para que o Juízo viesse a essas comunidades (…) para que enxergasse aquilo que o MPF já vinha observando desde 2023. Porque o MPF viu que essas comunidades foram apagadas por esse empreendimento, ou seja, elas não foram ouvidas, e as poucas que foram ouvidas não estão tendo o seu modo de vida completamente considerado. Elas vão ser impactadas por esse empreendimento de forma muito grave”, frisou. Ele conclui que, com as provas colhidas, o MPF espera que o Judiciário acate o pedido de nulidade das licenças do projeto.

O procurador-chefe do MPF no Pará, Felipe de Moura Palha, destacou que a inspeção confirmou as teses centrais da ação. “A inspeção judicial demonstrou o que o Ministério Público já vinha afirmando há muito tempo: a importância da consulta prévia livre e informada, inclusive para se saber qual seria a dimensão dos impactos nas comunidades. Ficou evidente, a partir das falas das comunidades, que os estudos sobre a pesca, sobre as rotas de pesca, sobre as espécies de peixe, o comportamento dessa atividade, sequer foram realizados”, pontuou.

Ele reforçou, ainda, como o conhecimento tradicional se sobrepõe à fragilidade dos estudos oficiais: “As comunidades demonstraram, através do seu conhecimento tradicional, todos os impactos que elas já anteveem que essa obra ocasionará. Por isso, o MPF reafirma a importância do Juízo vir até o local da obra, para evidenciar que existem comunidades tradicionais ao redor do Pedral do Lourenço, que estão subdimensionadas nos estudos do Dnit e que os impactos, principalmente na principal atividade delas, que é a pesca, sequer foram estudados devidamente.”

A importância processual e humana da diligência foi ressaltada pelo procurador regional da República Felício Pontes Jr. “É muito importante que em um processo coletivo o juiz possa ouvir a comunidade que é titular do direito violado. O processo coletivo tem um problema insuperável que é nós do Ministério Público fazemos a ação em nome dessas pessoas, mas elas não estão no processo. Uma forma de fazer com que o juiz possa conhecer essas pessoas é através da inspeção judicial. Isso facilita muito a compreensão do juiz do tamanho do problema que ele tem para julgar e, principalmente, os impactos que as suas decisões podem causar”, explicou.

Por fim, o procurador da República Sadi Machado enfatizou que a atuação do MPF visa garantir que os erros de grandes projetos do passado não se repitam. “Não há justiça possível nesse processo se não houver consulta prévia, livre e informada às comunidades potencialmente impactadas. Para além da consulta, é preciso que haja também um diagnóstico adequado dos potenciais impactos para que de fato se possa dimensionar quais são os riscos envolvidos”, declarou. “Nós saudamos a posição do Poder Judiciário de se aproximar da comunidade para realizar essa audiência pública e fazer a inspeção judicial, porque de fato é importante que o juiz tenha dimensão clara de quais são os anseios e as demandas da população. Sem isso não há justiça ambiental possível, sem isso não há justiça climática”.

(Ascom MPF-PA)