A Câmara dos Deputados não aguardou nem 24 horas e, estranhamente, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) pautou, em regime de urgência, o polêmico projeto de lei (PL 5029/2019), um dia depois de o Senado rejeitar quase todo o projeto de reforma da legislação eleitoral, “atropelando” os itens da pauta que tinham precedência para o exame dos parlamentares.
A decisão do presidente desagradou a base do governo, cujos líderes usaram o microfone do Plenário para registrar protestos contra Maia. “Isso aqui é uma manobra não prevista no Regimento Interno”, bradou o combativo líder do partido Novo, deputado Marcel Van Hattem (RS).
Quem também protestou não só contra a matéria ter entrado em pauta, foram os deputados federais do Pará, Edmilson Rodrigues (PSOL) e Joaquim Passarinho (PSD). Este último, nervoso, foi ao microfone em protesto veemente contra o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, considerado por ele anacrônico, ultrapassado e que está impedindo o avanço das votações. “Esse famigerado Regimento Interno foi criado quando o Brasil tinha seis partidos, ele não funciona mais”, protestou.
Provocado, em resposta ao colega Joaquim Passarinho, o presidente Rodrigo Maia disse: “O deputado Eli Borges (Solidariedade-TO) já fez um trabalho. E nas próximas semanas a gente vai começar a fazer reuniões para discutir um formato para a próxima legislatura e ver o que é consenso para essa legislatura. De fato, organizar o regimento ajuda muito os trabalhos do Plenário da Câmara”.
Uma noite que desgastou a imagem da Câmara
Desde o início do ano, a Câmara dos Deputados vinha recuperando sua imagem com os brasileiros, mas, a noite de ontem, teve o condão de colocar todo esse trabalho em xeque. As discussões sobre a matéria prosseguiram e o pior ainda estava por vir.
Não adiantou a base apresentar sucessivos requerimentos à Mesa de: adiamento, retirada de pauta e inversão de pauta. E mesmo obstruindo os trabalhos, os partidos do Centrão saíram vitoriosos, derrubaram todos os requerimentos e, por 249 votos a 164, a Câmara aprovou o uso de dinheiro do fundão eleitoral para pagamento de advogados e contadores nas campanhas políticas, tudo com o uso de dinheiro do contribuinte.
A matéria avançou e foi para a votação nominal. A Câmara dos Deputados reabilitou o texto e decidiu manter trechos retirados pelos senadores. Os deputados, contudo, abandonaram algumas das principais medidas que afrouxavam as regras vigentes.
Inicialmente, a proposta reduzia a possibilidade de punição por irregularidades. Além disso, o texto original, aprovado no último dia 3 pelos deputados, pretendia esvaziar os mecanismos de controle e transparência no uso de verbas públicas eleitorais.
Para que passe a valer já em 2020, o projeto precisa ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) até 4 de outubro. Ou seja, um ano antes da data marcada para o primeiro turno. O presidente pode tomar essa decisão em até 15 dias a contar a data de quarta-feira (18).
A reportagem do Blog do Zé Dudu ouviu várias lideranças ligadas ao presidente e todas foram unânimes: “Pediremos que o presidente vete o que foi aprovado nessa noite de vergonha e mantenha apenas o Fundo Eleitoral, como aprovado na terça-feira (17), pelos senadores.”
Um PL abrangente
Para que os leitores entendam a complexidade e abrangência do projeto de lei (PL 5029/2019), aprovado em tempo recorde e sem audiências públicas e aprofundamento de suas consequências em discussão na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Casa, por exemplo, a matéria altera as Leis números 9.096, de 19 de setembro de 1995, 9.504, de 30 setembro de 1997, 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), 13.831, de 17 de maio de 2019, e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre regras aplicadas às eleições; revoga dispositivo da Lei nº 13.488, de 6 de outubro de 2017; e dá outras providências.
Mesmo sob pressão, deputados afrouxaram as regras eleitorais e enfraqueceram a Lei da Ficha Limpa
Em meio à repercussão negativa e da pressão de entidades da sociedade civil, a maioria do deputados da Câmara Federal resolveu dobrar a aposta e manteve de pé o projeto que diminui a transparência e afrouxa o controle sobre o uso das verbas públicas para partidos e candidatos. O texto foi rejeitado em quase sua integralidade na votação da noite da terça-feira (17) pelo Senado.
Após horas de reuniões com líderes dos principais partidos, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que os deputados irão tirar os pontos que sofreram mais resistência na sociedade e isso revoltou eleitores de todo o Brasil que protestaram nas redes sociais.
O que previa o projeto inicial?
O texto que saiu da Câmara, entre outras coisas, ampliava brechas para caixa dois e reduzia a possibilidade de punição por irregularidades, além de esvaziar os mecanismos de controle e transparência no uso de verbas públicas eleitorais.
O que decidiu o Senado?
A Casa chegou a tentar um acordão com o governo para aprovar o projeto inicial, mas desistiu após pressão. O texto que passou no plenário prevê apenas a manutenção do fundo eleitoral, verba pública que financia campanhas.
O que aconteceu após a aprovação do projeto no plenário do Senado?
Como sofreu alterações, o texto voltou para a Câmara para a apreciação dos deputados. A Casa reabilitou e aprovou o texto-base da medida na quarta-feira (18), abandonando alguns dos principais pontos que afrouxavam as leis eleitorais.
O que mudou em relação ao texto inicial?
Após uma grande pressão de entidades da sociedade civil, os deputados concordaram em retirar do projeto cinco pontos:
• o que permitia que os 33 partidos usassem qualquer sistema contábil de prestação de contas disponível no mercado, o que acabava com o sistema padrão usado pela Justiça Eleitoral, dificultando em muito a transparência e a fiscalização;
• o que exigia a prova de dolo, ou seja, de ação consciente e premeditada, para que houvesse punição pelo mau uso da verba pública distribuída aos partidos;
• o que permitia correção de problemas na prestação de contas até o seu julgamento;
• o que adiava em oito meses a prestação de contas eleitorais devida pelos partidos;
• o que permitia o uso da verba pública para contratação de advogados para filiados acusados de corrupção e para interesse “direto e indireto” das siglas
O projeto precisa voltar ao Senado?
Não. A Câmara ainda precisa votar destaques, ou seja, tentativas de mudanças em trechos específicos. Depois disso, o projeto segue para a sanção do presidente Jair Bolsonaro.
Por que há pressa para que o projeto seja aprovado?
Mudanças na lei eleitoral precisam ser aprovadas até 1 ano antes da data do primeiro turno para que tenham validade já na eleição seguinte. Nesse caso, para que passem a valer em 2020, as regras precisam ser sancionadas por Bolsonaro até 4 de outubro.
O fundo eleitoral, por exemplo, foi criado em 2017 com validade apenas para a eleição de 2018. Se o trecho da lei que estende a medida não for sancionado até o dia 4, as eleições do ano que vem não contarão com essa forma de financiamento.
De quanto será o fundo eleitoral em 2020?
A previsão é que o valor seja o mesmo de 2018, R$ 1,7 bilhão, mas o projeto atual não tratou de quantias. Isso só será definido na votação do Orçamento-2020, no fim do ano.
Como ficou o projeto final?
Uso do fundo partidário
O fundo partidário é uma das duas fontes públicas de financiamento dos partidos e candidatos. Em 2019 deve distribuir R$ 928 milhões às legendas. Para que ele poderá ser usado:
Contratação de advogado – Partidos poderão usar a verba para de consultoria contábil e advocatícia para ações de controle de constitucionalidade e em processos de interesse partidário, “relacionados exclusivamente ao processo eleitoral”. Esse valor não entrará no limite de gastos das campanhas. Pessoas físicas também poderão bancar esses gastos em valores superiores às doações eleitorais que podem fazer hoje. Segundo especialistas, isso amplia as brechas ao caixa dois;
Impulsionamento na Internet – Partidos poderão usar a verba para impulsionar conteúdos na internet;
Multas eleitorais – Será permitido o uso da verba partidária para pagamento de multas eleitorais, o que hoje tem sido vetado pela Justiça;
Passagens aéreas e sedes partidárias – Fica liberado o uso da verba para compra de passagens aéreas até para não filiados e aquisição de sedes partidárias, entre outros pontos;
Participação feminina – Partidos têm que destinar ao menos 5% do que recebem do fundo partidário para promoção de políticas de estímulo à participação feminina na política. O projeto prevê que as legendas possam criar instituto com personalidade jurídica própria para gerir essa verba, o que livra dirigentes de punição por eventual aplicação irregular;
Fundão eleitoral
O fundo eleitoral é a outra fonte pública de financiamento dos candidatos. Em 2018, distribuiu R$ 1,7 bilhão. Na prática, não há alteração relevante. Seu valor será definido pelo Congresso na votação do Orçamento da União para 2020, o que deve acontecer até o fim do ano.
Fiscalização dos partidos e dos candidatos
Fichas-sujas – Problemas que possam barrar a candidatura dos políticos devem ser aferidos até a data da posse, não mais no momento do pedido de registro
Pessoas expostas politicamente – Partidos ficam de fora da atenção especial dedicada pelo Coaf (o Conselho de Controle de Atividades Financeiras) às operações e propostas de operações de pessoas expostas politicamente;
Prestação de contas – A desaprovação das contas pela Justiça tem como punição a devolução aos cofres públicos da quantia apontada como irregular, mais multa de até 20%. O pagamento se dá por meio de desconto nos repasses mensais do fundo partidário. Agora, o desconto não poderá ultrapassar 50% da cota mensal do fundo a que o partido tem direito. Técnicos que analisam as contas também não poderão mais recomendar, ao juiz, a punição a ser aplicada. Por fim, os partidos poderão fazer sua prestação de contas do ano anterior até 30 de junho — dois meses a mais do que vigora hoje, 30 de abril.
Propaganda eleitoral
Volta a obrigatoriedade de que rádios e TVs veiculem a propaganda partidária, o que foi extinto em 2017.
Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu, em Brasília