Só se consegue tratar usuário de drogas em clínicas de recuperação?

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Por Wagner Caldeira *

imageLi em algum lugar da internet a seguinte notícia: “Tramita em segredo um projeto de lei no mínimo polêmico. Lideranças do governo querem criminalizar a venda de bebida alcoólica, sendo que aqueles que comercializarem a bebida estariam sujeitos à pena de detenção por até 4 anos e o consumo ficaria sujeito a sanções como multa ou internação do usuário. Tal medida visa reduzir os acidentes de trânsito com vítimas fatais, já que recentes pesquisas mostram que uma em cada cinco vítimas de trânsito age sob o efeito de álcool. Além disso, o álcool está  associado a casos de violência doméstica e sexual e é a substância psicoativa que mais faz vítimas indiretas, afirmam especialistas”.

Calma, não precisa correr no boteco da esquina pra comprar todo o estoque da sua cerveja preferida porque essa notícia nunca saiu em lugar nenhum. Eu inventei um fato me aproveitando da tendência geral em acreditar em tudo que está escrito na internet, acrescentei credibilidade usando as duas frases mágicas: “recentes pesquisas mostram” e “afirmam especialistas” e pronto, está criado um furo jornalístico. Apenas duas coisas são verdadeiras na minha notícia inventada: 1) realmente 1 em cada 5 vítimas de acidente de trânsito tinham ingerido bebida alcoólica, além disso, das vítimas de agressão 49% haviam bebido. Esses são dados do ano passado colhidos pelo Ministério da Saúde. 2) Realmente o álcool é a droga psicoativa que mais faz vítimas no mundo inteiro. Por ano, as drogas proibidas matam 250 mil pessoas ao redor do mundo, enquanto que o álcool mata 2,25 milhões.

Eu criei essa notícia também pra pensarmos nas consequências de uma decisão desta. Vejamos:

1) As pessoas não vão parar de beber, logo os “traficantes de álcool” seriam presos aumentando uma população carcerária que já não cabe nos presídios existentes no país;

2) Com o álcool na ilegalidade aqueles que forem comprar bebida terão acesso a outras drogas que hoje já são ilegais, como cocaína, crack, maconha, heroína, etc;

3) Muitos eventos importantes do país estariam com risco de não mais existir, pois a indústria da bebida alcoólica financia desde o carnaval até times de futebol;

4) O governo deixaria de arrecadar milhões em impostos. Também perderiam os meios de comunicação com anúncios;

5) Em contrapartida iriam ganhar os grupos religiosos que hoje são proprietários de clínicas de recuperação, pois teriam uma clientela infinitamente maior que os usuários de crack, que são os usuários de álcool.

6) A violência teria um crescimento assustador, uma vez que os “traficantes de álcool” seriam muito mais poderosos que os traficantes de crack que temos hoje, simplesmente porque o álcool já tem hoje um número infinitamente maior de dependentes em comparação com o crack.

No entanto, usei o álcool apenas pra termos um parâmetro de comparação com as drogas ilícitas. Notem que o usuário recreativo de álcool geralmente é alguém aceito e até desejado socialmente. Já o usuário de maconha ou cocaína não tem essa mesma sorte. O usuário de álcool só começa a incomodar quando já é um dependente, mesmo assim ele pode viver nas ruas que nenhum órgão do governo ou a polícia vem prendê-lo em uma clínica contra a sua vontade, como estão acontecendo agora com as internações compulsórias no Rio e em São Paulo.

Esta diferença de tratamento é baseada em que premissas? No poder da droga? Acho que não, uma vez que já sabemos que o álcool é a droga que mata mais pessoas enquanto que as mortes ligadas ao crack são muito mais relacionadas a doenças desenvolvidas pela desassistência e à violência do tráfico que propriamente a uma ação direta do usuário.

Seria essa diferenciação de tratamento uma consequência do perfil do usuário de cada droga, já que os usuários de álcool são pessoas que têm família enquanto os de crack são marginais perigosos? Acho que nesse caso é o inverso: o usuário de crack tornou-se marginal porque, pra comprar a droga, ele precisa se envolver com traficantes, além disso o próprio uso da droga, seja recreativo ou abusivo, já faz com que a família e a comunidade o exclua.

Nesse ponto do meu texto posso chegar a uma conclusão parcial que boa parte das pessoas que estão lendo já querem que eu queime no mais quente dos fornos do inferno. Porém outra parte deve ter  entendido que o tratamento que estamos dando pros dependentes de drogas ilícitas é injusto e que não faz qualquer efeito. A simples remoção das ruas e internação em clínicas é uma reprodução da exclusão pela qual eles já passam em casa ou na comunidade. Além disso, o estimativa de recaídas é muito alta. Segundo Paulo Amarante, um respeitado pesquisado da FIOCRUZ, o índice de pessoas que são  internadas contra a vontade e que voltam a usar drogas ao retornarem às ruas é de 95 a 97%.

Se internar não dá resultado, então o que fazer? A meu ver essa é a grande questão a ser debatida. Há uma pressão, tanto da parte de algumas prefeituras quanto da mídia, pelas internações de longa data. Há muitos interesses em jogo: dos proprietários de imóveis localizados onde há cenas de uso de drogas, dos donos das clínicas, da bancada evangélica que está ligada às comunidades terapêuticas, do próprio governo preocupado em passar uma imagem de limpeza e organização durante os grandes eventos que estão por acontecer no país, e de alguns políticos ansiosos por visibilidade e votos.

No Brasil, o próprio Ministério da Saúde possui dispositivos que tem se mostrado muito mais eficazes contra o avanço das drogas, como por exemplo os Centros de Atenção Psicossocial especializados no cuidado em Álcool e outras drogas, chamados de CAPSad. Trata-se de um serviço que não só cuida do dependente, mas também de seus familiares, articula e capacita a rede de cuidados, faz prevenção ao uso abusivo e realiza internações breves. Parauapebas já vem debatendo há algum tempo a necessidade de implantação de um serviço desse tipo, mas ainda não recebeu o devido apoio dos governos que se sucederam. A única cidade da região que tem previsão de inauguração de um CAPSad para esse ano é Marabá. Só lembrando que o Ministério da Saúde financia este serviço em conjunto com o município e, a partir do mês que vem provavelmente, também o estado.

Nos casos que necessitem de cuidados hospitalares mais complexos, o Ministério da Saúde dispões dos serviços hospitalares de referência, que são leitos em hospital geral especializados no atendimento de transtornos mentais e dependência química. Há ainda as Unidades de Acolhimento, que são serviços de abrigamento para dependentes que perderam os vínculos familiares e que estão morando na rua ou ameaçados por traficantes. Além disso, os Consultórios na Rua são unidades móveis com equipe multidisciplinar que presta cuidado sem tirar o usuário da rua.

Por último, existe a política de redução de danos. Reduzir danos é propor pro usuário que não consegue ou não quer largar a droga que use de forma menos prejudicial pra sua saúde e de seus familiares. Reduzir danos já foi sinônimo de distribuir seringas pra usuários de drogas injetáveis – que evitou muitas mortes por infecção pelo HIV – e deu a oportunidade pra que muitos usuários buscassem tratamento. Hoje a Redução de Danos é uma estratégia terapêutica que tem livrado muitos usuários e familiares de prejuízos maiores, pois quando se propõem, por exemplo, que um usuário de maconha fume em casa, ao invés de ir pra uma boca de fumo, protege-se esse sujeito de toda a violência típica dos pontos de venda de drogas, além de livrá-lo de começar a usar uma droga mais prejudicial, como o crack.

Bom, talvez quem está lendo esse longo texto não soubesse de todas essas alternativas. Fica a pergunta: por que elas não são divulgadas? Por que a TV só fala de internação em clínicas?

Deixo-lhes aqui com essas perguntas. Acho interessante que tentássemos respondê-las aí nos comentários, o que acham?

* – Luis Wagner Dias Caldeira é psicólogo formado pela UFPA, especialista em saúde mental pela UFRJ, referência técnica em saúde mental, álcool e outras drogas na região sudeste do Pará e psicólogo do Centro de Saúde Cidade Nova em Parauapebas, twitteiro ( @wagnerdc ) e colaborador intimorato deste Blog.

4 comentários em “Só se consegue tratar usuário de drogas em clínicas de recuperação?

  1. Ex Responder

    sou um ex-usuário de drogas e tenho um ponto de vista sobre o assunto que quero compartilhar com vocês.
    ao meu ver, existem dois tipos de usuários de drogas:
    – os viciados: meu caso.
    – os “normais”: caso de muitas pessoas.
    todos comecamos como usuários normais. ninguém começa usando drogas e no dia seguinte rouba da família ou na rua para sustentar seu vício. isso só aparece depois de algum tempo (muito ou pouco, depende de cada pessoa). no meu caso demorou uns 03 anos para que a coisa ficasse séria e mais uns 3 anos dentro dessa seriedade, ficando cada vez pior, até chegar em um absurdo descomunal, quando eu já usava há uns 06, talvez 07 anos.
    o grande problema é: se a polícia me pegasse com drogas quando eu usava há 02 anos e me oferecesse tratamento, seria inútil, eu não precisaria de tratamento e o tratamento seria inútil, isso é fato. não teria o que se tratar. se me pegassem com drogas quando eu usava há 06 anos e me oferecessem tratamento, aí sim, muito provavelmente surtiria algum efeito, porém, pergunto:
    qual seria a estrutura, no Brasil, que me oferecia esse tratamento. Pública? Impossível. não temos condições. Privada? Ok, eu tenho/tive, condições, muita gente não.

    Agora, sem dúvida que o usuário não é criminoso, ele é uma vítima. Criminoso é o traficante que vende, crimonoso são os policiais que fazem acertos com os traficantes (eu mesmo já vi, MUITAS, MUITAS vezes policiais civis saindo de dentro da favela ou -quando eu ainda era um usuário chique- de dentro da casa dos traficantes graúdos- com o acerto do mês ou da semana, dependendo do caso), esses são os criminosos. Porém, o usuáro, como eu, também vira um crimonoso para sustentar seu próprio vício. Eu roubei minha família, só não roubei na rua. Teria roubado se tivesse precisado, graças a Deus não chegou a tanto, mas certamente teria.

    O que fazer? Rever a polícia e a política. Impedir que tenhamos tantos locais de venda e tanta facilidade de acesso. Eu moro em São Paulo, em um bairro de classe média alta. Em um raio de 10km da minha casa tenho, que eu conheça, 15 pontos de venda de drogas. 15. A polícia conhece todos, e não faz nada. Alguns desses pontos de venda são tão declarados que houve situações que comigo e meu pai dentro do carro, parados no farol, já vieram oferecer drogas, absurdo, não?

    • maria costa Responder

      diego gostei do seu comentario proibiram de fumar dos ambiente fechado e droga alei não tem os policiais se preocupa de atrás dos carmelor para tomar mercadorias entar das casas dos outros ne levar as coisas quando chama apolicia para taficante que tem uma GANGUE eles fala ligue para 181

  2. Marina Responder

    Portugal, até o ano de 2000 era tomado pela pior epidemia de droga, a mais grave da Europa. Dez anos depois, eles se orgulham da política de descriminalização. Agora, lá a polícia não prende quem porta pequenas quantidades de drogas, no lugar disso, os usuários flagrados são encaminhados para tratamento. O que se ve agora, em Portugal, é uma queda no uso de todas as drogas e em todas faixas etárias. E aqui, o que acham voces, devemos tratar o usuário como criminosos ou como paciente que precisa de ajuda? Será que essa política daria certo aqui no Brasil?

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