Comunidade em área industrial do Pará foi contaminada por chumbo, diz estudo

Moradores de Dom Manuel apresentaram níveis do metal no sangue até oito vezes acima de limite; estudo não conclui qual foi a fonte de contaminação

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Moradores da comunidade de Dom Manuel, localizada no distrito industrial de Barcarena, no Pará, foram contaminados por chumbo, apresentando níveis do elemento no sangue até oito vezes acima de parâmetros internacionais.

É o que mostra um estudo inédito realizado pelo IEC (Instituto Evandro Chagas), vinculado ao Ministério da Saúde. Foram coletadas amostras de sangue de 41 moradores do local em 2012 e 2013. 

Os dados foram publicados no fim de agosto na revista científica International Journal of Environmental Research and Public Health. Segundo os pesquisadores, é o primeiro levantamento divulgado em revista internacional que mostra exposição ao chumbo em áreas industriais da Amazônia. 

O nível máximo de chumbo encontrado foi de 570,8 microgramas por litro. A média foi de 281,6 microgramas por litro na população local. 

Os especialistas adotaram como parâmetro o limite de 50 microgramas por litro para crianças e 100 microgramas por litro para adultos. Depois disso, segundo a literatura científica, é considerado perigoso. Uma das fontes é o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês). 

Entre crianças de até 10 anos, considerado o grupo mais vulnerável, os níveis foram até oito vezes acima do limite para a faixa etária. Entre adultos, faixa que inclui indivíduos com idades de 20 a 59 anos, os níveis estavam até cinco vezes acima do limite. 

Os níveis detectados em Dom Manuel, no geral, foram cerca de nove vezes maiores do que a média da comunidade de Laranjal (32,77 microgramas por litro), a cerca de 10 km de Dom Manuel e fora da área industrial. 

Em Laranjal, que fica a uma distância maior das indústrias, foram coletadas amostras de 219 pessoas. Os níveis, no geral, foram considerados normais e compatíveis com outros estudos, nacionais e internacionais, sobre o tema. 

O distrito em que Dom Manuel está inserido é composto por 90 empresas, distribuídas em uma área de 30 km², segundo a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará. 

Fica a poucos metros de empresas como a multinacional francesa Imerys, que beneficia e estoca caulim (minério que dá origem a pigmentos brancos), e a Tecop (Terminal de Combustíveis da Paraíba), que produz e estoca coque de petróleo (combustível sólido derivado do refino). Algumas casas, segundo pesquisadores, ficavam a 20 metros de indústrias.

O estudo do IEC não conclui qual foi a fonte de contaminação —água, ar ou alimentos, por exemplo. E recomenda que a investigação seja aprofundada. Mas aponta que existe uma correlação entre maior consumo de carne vermelha e frango e níveis de chumbo no sangue das pessoas analisadas. Mesmo empresas mais distantes poderiam ter contribuído para a contaminação, dizem especialistas. 

Dom Manuel já foi composta por cerca de cem famílias, segundo Simone Pereira, coordenadora do laboratório de química analítica e ambiental da UFPA (Universidade Federal do Pará) e estudiosa da região. 

Com a chegada das indústrias, muitos moradores saíram do local. “Praticamente fecharam a entrada da comunidade. Eram poucos metros de abertura para entrarem e saírem”, diz. Hoje, são poucas as famílias que continuam vivendo na comunidade. 

Comunidade Dom Manuel, em Barcarena, no Pará – Victor Furtado/O Liberal

Pereira realizou um estudo, a pedido da Procuradoria do Pará e divulgado no ano passado, que detectou 21 elementos, entre eles metais pesados como chumbo, níquel e cromo, no cabelo de moradores de 14 comunidades de Barcarena. Ela coletou as amostras em 2015. 

Diferentemente da pesquisa do IEC, não confirmou o nível de contaminação dos moradores, já que, por meio do cabelo, só teve acesso a substâncias expelidas pelo corpo.  

Pesquisadores da UFPA também constataram, em 2012, que as águas de poços artesianos de 24 comunidades entre 26 analisadas estavam com altas concentrações de chumbo.

Barcarena tem um histórico de desastres ambientais causados por empresas instaladas na região. Em 2007, por exemplo, a Imerys foi interditada após um vazamento de quase 300 mil metros cúbicos de caulim com água, que chegou ao rio Pará. Houve novos vazamentos de rejeitos em anos seguintes, o que levou o Ministério Público Federal e do Estado a pedirem a suspensão das atividades da mineradora no município em 2016. 

No ano passado, a Alunorte, refinaria de alumínio da norueguesa Hydro, foi centro de uma polêmica após vazar rejeitos tóxicos de mineração com metais pesados, como o chumbo, e contaminar comunidades de Barcarena. Foi descoberto também que usavam uma tubulação clandestina para jogar resíduos em um rio, segundo laudo do IEC. 

A exposição ao chumbo detectada no estudo do IEC deste ano não significa, necessariamente, que o indivíduo tenha ou terá problemas de saúde, diz o instituto. 

O toxicologista Anthony Wong, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, explica que o chumbo pode ficar por décadas no corpo caso a pessoa contaminada não seja medicada. Fica armazenado em órgãos como fígado, rins, cérebro e coração. Caso a exposição seja crônica, parte do chumbo vai para os ossos e dentes. 

Pode gerar danos no sistema nervoso e danos cerebrais irreversíveis. Entre os sintomas da contaminação, estão fadiga, dor de cabeça intensa, cólica abdominal e infertilidade. “Na criança, é muito mais tóxico porque afeta o desenvolvimento do sistema nervoso e dos ossos”, diz Wong. 

O estudo recomenda que a população de Dom Manuel não consuma águas de captação subterrânea ou fluvial até que haja um aprofundamento dos estudos a respeito de níveis atuais de metais pesados na região. E que ocorra uma remoção gradativa dessas comunidades ao lado de áreas industriais em Barcarena. 

Também diz que empresas da localidade devem adotar procedimentos ambientalmente responsáveis, tais como o uso de filtros nas chaminés ou a adoção de procedimentos menos poluentes. 

Em nota, o IEC afirmou que vem contribuindo com os órgãos de saúde e com o Ministério Público “no sentido de se delinear encaminhamentos que visem encontrar soluções para mitigar e/ou sanar o cenário observado até o momento.”

Os dados do levantamento foram apresentados em 12 de agosto na Sespa (Secretaria de Saúde do Estado do Pará). Também participaram da reunião representantes da secretaria de Saúde de Barcarena e do Lacen-PA (Laboratório Central do Pará). Dois dias depois, os dados foram apresentados ao Ministério Público Federal do Pará e à Promotoria de Justiça de Barcarena. 

O Ministério Público Federal do Pará afirmou, em nota, que está analisando o material do estudo para verificar quais medidas serão adotadas pelo órgão. Explica ainda que há 41 ações e investigações em andamento relacionadas a questões socioambientais e no distrito industrial de Barcarena. Três delas envolvem Dom Manuel. 

Em nota, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará afirmou que não foi informada oficialmente sobre o estudo e que não se pronunciará a respeito. 

A Alunorte, empresa do grupo Hydro, afirmou em nota que realiza o monitoramento de metais pesados a cada seis meses e que todos os resultados estão abaixo dos limites legais. Esses dados são reportados às instituições ambientais anualmente, conforme previsto na licença de operação, segundo a empresa.

Diz também que não houve vazamento ou transbordo dos depósitos de resíduo de bauxita da refinaria após fevereiro de 2018. E que, após o episódio, “buscou construir um relacionamento mais próximo e transparente” com as comunidades locais. A prefeitura de Barcarena, por sua vez, não respondeu aos questionamentos da reportagem. Não conseguiu entrar em contato com a Imerys e a Tecop. 

Fonte: Folha de S.Paulo